quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Bode Pós-Livro

Conheci meu livro preferido, como se deve conhecer essas coisas, numa “conversa de bar”. Eu, uma conhecida (que eu mal conhecia) e uma amiga dela falávamos sobre livros. A amiga, digamos “Molly”, dizia que não conseguia terminar um livro. Nunca. Não interessava o quão bom ele fosse, ou quanto ele se relacionasse com a vida dela. Pelo que dizia, Molly lia. Muito. Só não conseguia chegar aos finais. E ela me dizia isso porque esse livro, A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, era o primeiro livro “sério”, adulto, que ela terminava. Pensei “caramba, preciso ler isso”, igualmente influenciado pela minha sede de moleque de 17 anos que queria ler todos os romances bons do mundo e pela minha sede de moleque de 17 anos de impressionar a menina e poder, um dia, levá-la pra cama ou pro canto.

Óbvio que nunca mais conversamos. Óbvio. Mas comprei o livro no dia seguinte, e em dois dias eu engoli aquelas páginas. Precisei, imediatamente, recomeçar o livro, assim que tinha terminado. Dessa vez, com mais vagar, demorei uma semana. Não li virando as noites (como costumava) sem despregar os olhos das linhas, mas parando, me deitando, encostando a cabeça na parede, no travesseiro, no chão, onde desse. O processo de leitura tinha sido completamente diferente. Até que, no sétimo dia, quando terminei a única releitura que seguiu imediatamente a leitura na minha vida, bateu. O livro tinha acabado, e o meu convívio com aquelas personagens também. Eu poderia voltar a ele, poderia reler uma terceira vez ou me tornar monomaníaco e reler uma oitava, uma nona, uma vigésima vez. Mas tinha apreendido uma parte suficiente do livro. Ele tinha realizado um processo na minha cabeça, na minha alma, no meu corpo, e eu aproveitei esse processo e sofri com ele e me deliciei com o sofrimento. Só que o livro acabou, o processo acabou, e era preciso voltar pro mundo. Bateu.

Por que raios Molly (que vi esses dias num bar, alguns quilos mais gorda e falando um monte de merda) não terminava os livros? Não tinha parado pra pensar, embora não fosse a primeira vez que eu sentia um final. Nos filmes geralmente era fácil, todo o ritual: a luz acendendo, o “massa né?” do amigo ao lado, a inveja dos casais que perderam a última cena pra virar protagonistas de alguma outra coisa, a vontade de ir ao banheiro depois de mais de meio litro de coca-cola aguada... Em casa então, um dos cômodos claros (banheiro ou cozinha) resolvia o problema. É só comer um pedaço de queijo, ou tomar um coca, ou dar uma mijada e tudo fica certo. E quando se termina um livro? O mais sensato a fazer, talvez, seja ligar pro amigo que o recomendou (quando ele existe), mas pode ser tarde. Ele pode não se lembrar da cena que você quer comentar e tudo... O que é que se vai fazer no exato momento em que a última palavra aparece, e resta só fechar a capa?

Claro que os livros operam de formas diferentes nas pessoas. O fim, no entanto, é sempre uma experiência parecida, e por isso dá vontade de ir logo pra ele, acabara, começar o próximo livro ou não começar mais nada. Temos que nos despedir daqueles personagens, daquela atmosfera. E mais do que isso: quando a narrativa acaba, já não há mais diferença ou fronteira entre você e ela. Aquelas páginas fazem parte do leitor, e não é possível mais “viajar”, “se sentir em outro lugar” ou qualquer uma dessas baboseiras que os falsos amantes de literatura clamam fazer. Fim da linha, e agora é que vamos ver se o livro é bom. Porque os bons estão presentes, não onipresentes, mas à espreita numa esquina. Versos e pequenos fragmentos narrativos nos aguardam, depois do fim de uma leitura. Surgem inevitavelmente, e é esse o temor do final. O bode que se segue ao texto, e o silêncio que vem com ele. A certeza de que sim, Molly, agora que você acabou esse livro ele é seu. E não interessa quanta merda você fale no bar, nem quantos quilos engorde. Ele ainda lhe alcança. E quando bate, querida...