(Supostamente escrito pelo capitão Bloch-Rochelle,
em torno do ano de 1900, e encontrado entre seus arquivos pessoais).
Não há engodo em pensar, meus senhores e
senhoras da grande França. Engodo algum. O engodo está justamente no
não-pensar, no utilizar a mente para qualquer outro propósito que seja o de
não-pensar. Ou antes, devo me corrigir, no utilizá-la para um propósito que
seja o de não-pensar diante de outros, de outras. Diante do próximo, do distante,
do estrangeiro ou do patrício.
Alguns nos têm acusado, com bastante
veemência, de nos postarmos contra a nação francesa quando defendemos que um
preconceito não deve guiar um julgamento. Dizem que prejudicamos a unidade
nacional, que o país está desmoralizado em virtude das recentes crises, e que
nossa ação, que se guia por uma “petulância de academia”, é um atentado à
cultura.
A cultura, meus senhores e senhoras, é mais
que um mero verniz, que o toque final da glória e da beleza de uma nação ou de um
povo. A cultura não serve como objeto de exibição (embora tenha servido), como
atestado de posição social (embora venha servindo) ou como uma pequena jóia
adquirida a custo de muita economia visando algum tipo de auto-afirmação
(embora, ultimamente, a metáfora tenha sido muito precisa na descrição do que
se têm feito da mesma cultura).
A cultura, meus senhores e senhoras, é muito
mais que o tal verniz; é um processo através do qual o homem, imerso em
sensações que não pode compreender completamente, é forçado a utilizar a
faculdade do pensar. Ainda que saiba que as obras de arte, que os objetos de
cultura, não apelam exatamente a esta faculdade.
Alguns, perigosamente, crêem que associar a
cultura e o pensar é um equívoco. O equívoco é não fazer a associação, por mais
dolorosa que ela seja. A faculdade do pensar, meus senhores, não diz respeito
(que perdoem-me os meus rigorosos colegas da filosofia e da lógica, que me têm
sido tão amáveis, por me intrometer em seu domínio) única e exclusivamente à
ordenação de categorias, à classificação, à transformação das coisas ao molde
da mente pensante. A provocação da cultura, a grande provocação, é justamente
jogar com esse molde. É transformá-lo, é quebrá-lo e vê-lo se reerguer de
diversas formar.
A cultura, meus senhores e senhoras, nos
atrapalha muito em nossas convicções e julgamentos. Coloca-os na berlinda.
Assim, é impossível acessar a cultura tomado de conceitos estabelecidos antes
do ato. Para acessá-la corretamente, para poder entrar em seus salões e beber de
seu néctar, é necessário deixar as convicções do lado de fora da porta. Com
isso, não quero dizer que o homem ou a mulher que acessa a cultura está sem
convicções. Se elas forem suficientemente sólidas, suficientemente embasadas,
persistirão, e ganharão força. Mas apenas ganharão força se forem questionadas.
Levar, para um julgamento como o do caso Dreyfus, que passo a chamar aqui o
caso Dreyfus-Zola, as concepções prévias sobre os judeus ou os socialistas é
incorrer em erro tão grande quanto julgar que um romance de Zola é bom apenas
por ter sido escrito por Zola. Afinal, o próprio Zola também se equivoca. É,
ainda assim, o homem mais corajoso deste país. Por não temer seus erros,
sabendo que são frutos, sempre, de seu pensar.
O pensar, meus senhores e senhoras, é
representado, simples e somente, por esta faculdade de questionar e
questionar-se. O não-pensar é exercido todas as vezes que uma convicção é
repetida e repetida, sem cessar, em frases absurdas como “ainda que o réu seja
inocente, é a unidade da nação que está em jogo”. A ideia da unidade da nação
pode atropelar a inocência de um réu? Não, meus senhores, não pode.
No primeiro parágrafo deste manifesto, creio
que deixei bem claro um equívoco cometido por mim. Além de tê-lo deixado claro,
fiz uma correção ao meu erro, uma correção imediata, que visava a precisão.
Iniciar uma ação por um erro pode ser considerado, por muitos, como tolice.
Tolice maior ainda seria não iniciá-la, quando se supõe haver motivos para
fazê-lo. Mas a grande estupidez, a grande idiotice (se me permitem o uso da
palavra agressiva) seria, iniciada a ação, perceber nela um erro e não,
imediata e energicamente, corrigi-lo, e tornar a correção pública.
Principalmente se a referida ação disser respeito a outros. É neste espírito, senhores,
que os exorto a corrigir seus erros, e a exigir de seus governantes,
comandantes e generais que corrijam seus próprios erros. A glória não está em
não errar; está, meus senhores e senhoras, em não-pensar.
Pensem, meus senhores e senhoras. Pensem incessantemente.
E afastem de si o não-pensar!
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O texto acima é apenas um pequeno exercícios de imaginação, produzido em virtude de leituras recentes sobre a história da França.