quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Fake, fake, fake...

Você, torcedor são paulino que desistiu ontem, que largou o jogo no meio, e que soltou a frase "já tá perdido" ou qualquer variante dela,

você não é um torcedor de verdade. Você é um desses acostumadinhos a tricampeonatos, a comemorações confortáveis e a trocar os jogos importantes do seu time por noites de raiva e de tédio no facebook. Você sabe o nome dos jogadores porque gosta de xingá-los. Não interessa se você vai ao estádio quando pode ou se vê do sofá, ou se acompanha pela internet: esteja onde estiver, você não é um torcedor. Você não sofreu por amor quando seu time estava ameaçado de rebaixamento: sofreu por vergonha. Você não disse pros seus amigos, com convicção, que seu time não iria cair; você fugiu deles. A cada derrota, você largou seu time no meio. A cada jogo ruim, você largou seu time no meio. Você não é um torcedor.
Aprenda com os torcedores da ponte preta, que gritam, cantam e acreditam depois de tomar um gol. Que acreditam no que todos os outros dizem para eles ser impossível, por amor e por fé. Aprenda a conhecer a história do seu clube, a saber que, antes de ser o time mais vitorioso do Brasil, como você gosta tanto de dizer, ele deveria ser o SEU TIME. Aprenda o significado da frase: ESSE É O TIME ONDE A MOEDA CAI EM PÉ.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Rogério Sêneca?



Amanhã, a imprensa distorcerá o que Rogério Ceni disse ao sair de campo. O ídolo são-paulino, pressionado por duas perguntas seguidas sobre sua suposta aposentadoria, deu uma declaração sobre o clube em que trabalha. O teor da declaração será esquecido; a frase marcante, lembrada. “Dá para assinar contrato em branco”, disse o goleiro. Antes, fez filosofia sobre o tempo, o acúmulo de marcas e conquistas na vida, e a impossibilidade de se comparar gênios a’O Gênio (no caso, Rogério Ceni a Pelé, mas a frase poderia ser aplicável a Jonathan Litell e Liev Tolstoi). Não é a filosofia que será lembrada amanhã. Amanhã, uma frase será notícia, espremida entre as palavras de uma redação.

Parte da imprensa fará o que faz todos os dias: escolherá um recorte que se encaixe naquilo que quer e precisa, pelos motivos que for, dizer. Quando encontrar aquilo de que precisa, comemorará não como quem comemora um gol, com paixão e emoção pura, e sim como o torcedor cínico que, com um sorriso amarelo, comenta com um cúmplice a desclassificação do rival. O sentimento não será o de dever cumprido, mas o de ter tomado sua pequena parte na ração diária de erro sobre a qual nos fala Drummond. A vida seguirá seu fluxo, o tempo sua marcha, e as marcas, seu acúmulo.

Rogério não será a única vítima da imprensa. Jogadores e dirigentes de muitas outras agremiações terão o mesmo tratamento. Políticos terão o mesmo tratamento. Jovens entrevistados nas ruas, acidentes de automóvel, a morte de cantores; tudo terá o mesmo tratamento. Em algum lugar, quase sempre com público menor, outra parte da imprensa levantará sua voz e tentará fazer jus às palavras de um goleiro, de uma mãe ou de uma massa. Todos os dias, no entanto, o embate se dará não entre os órgãos que buscam a informação e aqueles que a aproveitam, mas sim entre a verdade e a vontade de falsificação.

O futebol não é um reino mágico: está intimamente ligado à sociedade. A ele estão associados grandes capitais, a imprensa, multidões, paixão, simbologia... A lista de cordões que o ligam à sociedade é imensa. Os jogadores de futebol podem ser símbolos de alienação e de desprezo, ou de rebeldia e consciência política. Como os artistas, os atores de cinema, os cantores e os padeiros. Não entrarei no mérito eterno de que futebol não é, necessariamente, alienação. Ficarei com o inegável: sendo fruto e parte integrante de uma sociedade complexa, não pode ser visto como simples brincadeira.

O futebol tem, no entanto, uma particularidade: talvez pela paixão, talvez pela exposição, talvez pelo volume de dinheiro que por seus centros circula, tudo está nele como que focado por uma lente de aumento. As palavras de um jogador são ouvidas e repetidas com mais constância que as de muitos líderes de oposição; são discutidas à exaustão por especialistas da informação e por especialistas da cerveja e do amendoim salgado. Se tudo ganha eco e se amplifica, deveríamos ser mais capazes de ver, nesse mundo, o que o repórter investigativo (e não um repórter esportivo) foi capaz de observar. Falo de Andrew Jennings, autor de dois livros sobre a corrupção em universos distintos: a Igreja Católica e o futebol. Vaticano e FIFA. Jennings diz que foi muito mais fácil investigar o último: afinal, a soberba de seus condutores (de seus Berlusconis) não lhes permitia que escondessem rastros e pegadas. Entre as quatro linhas, tudo estava mais às claras que entre as quatro paredes sagradas.

Mas do que mesmo eu falava? Ah, sim: amanhã, distorcerão as palavras de Rogério Ceni. Retirarão de contexto seu elogio à estrutura de seu clube. Rogério dizia que nunca pediu um adiantamento ao clube, e que nunca recebeu um salário atrasado. Dizia que dispunha de toda a estrutura que queria. E que com um clube assim, não havia questões de negociação para um eventual contrato: era possível assinar um contrato em branco. Afinal, a confiança, depois de anos de trabalho, é total e absoluta. “Dá para assinar contrato em branco”. Amanhã dirão, somente, que Rogério disse, numa entrevista sobre sua aposentadoria, que “Dá para assinar contrato em branco” com o São Paulo. A filosofia, por valiosa que fosse, será deixada de lado. E um pequeno desvio fará mágica. A mesma mágica que, todos os dias, é feita em todas as sessões de muitos dos jornais, dos programas de tevê e das emissões de rádio. A mesma mágica que foi feita hoje e ontem.

domingo, 20 de outubro de 2013

Reorganizações

Se tenho saudades de algo, é do dia em que, tendo já comprado "Estorvo", de Chico Buarque, me sobrara quase a metade de um vale presente da livraria saraiva, e, indeciso, resolvi escolher um outro livro. Passei os olhos por algumas estantes, mas, sendo estudante do terceiro ano do colegial, me faltava repertório: é comum, nessa época, adquirirmos os livros de que nossos amigos gostam, ter muito receio com aqueles que nossos pais recomendam e ter medo daqueles que os professores de literatura dizem ser os melhores.

Em algum momento, tentava me lembrar de alguma recomendação, enquanto meus olhos, vagabundos, escalavam as letras deitadas dos títulos sem que meu pescoço se flexionasse. E quando minha memória me incomodava, por se recusar a trabalhar, a de um elefante é que se apresentou. Eu lera (claro!) no jornal, alguns dias atrás, uma matéria sobre António Lobo Antunes, de quem nada conhecia. O livro era curto e, além disso, quase não excedia o valor do vale. Coincidências financeiras. Achara meu segundo livro e, em breve, estaria lendo Chico Buarque, cujo show eu veria em algumas semanas, se conseguisse o ingresso que desesperadamente procurava.

No caminho para casa, a orelha do livro me fizera sentir um frio na barriga: será que é esse, e não “Estorvo”, o livro que lerei à noite? Sei que gosto do tal do Chico, desse carioca dos olhos azuis e de voz de coitadinho que precisa de amparo (e a quem metade das mulheres do país parece querer amparar); por que não, então, dar uma  chance para o tal Lobo Antunes, a despeito de ele ter metido a boca em José Saramago? Guerra de Angola, desmanche do Império Colonial Português... Abri o livro.

O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de paste de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:

Assim escrito, foi assim que li: de um gole só, rápido, pensando “car...”. E antes que eu pudesse concluir o pensamento, as próximas frases se engatavam. Aparentemente, eu não tinha comprado um livro, mas um feitiço que, uma vez lido, me transportaria não para outra dimensão, e sim para dentro da mente de alguém. Ter aprendido o que era um fluxo de consciência foi o equivalente, na minha vida, a ser abduzido. Há quem diga que sem as luzes, os instrumentos afiados e a sabedoria milenar, mas não: havia luzes quando as armas disparavam nas noites angolanas, facas perfuravam a carne de soldados, para salvá-los da morte ou da guerra; e a sabedoria milenar, meu Deus, ela tinha que existir em algum lugar. De novo o palavrão se formava em minha mente. Antes que eu pudesse terminá-lo, bati o livro.

Li Memória de Elefante em dois dias e duas tacadas: a primeira, entre a chegada em casa, às nove e meia da noite, e as quatro da manhã. A segunda, entre as oito da manhã e o meio-dia. Um ano depois, já estudante de literatura, leria Os Cus de Judas. E igualmente me apaixonaria por suas primeiras palavras, que cito de cor a quem me perguntar na rua: “Do que eu mais gostava no Jardim Zoológico era o rinque de patinagem...”. Anos depois, morando em Essen, na Alemanha, eu finalmente patinaria – no gelo – e a primeira coisa em que pensaria, antes do frio ou das excelentes companhias, era no livro.

Se tenho saudades de algo, é da fúria com que devorei Memória de Elefante, do modo como imediatamente, ao conhecer Lobo Antunes, tive que alterar o tamanho de todos os outros escritores que moravam no meu parco repertório. Troquei cadeiras, removi presentes, redistribuí os louros. E como um tirano que encontra uma nova amante, festejei uma nova divindade no meu panteão. Do vinho dessas festas é que tenho mais saudades.


Li, eventualmente, Estorvo. E graças a uma vizinha maravilhosa, fui ao show do Chico. 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Trecho



Olhei os navios; nada. Era como se eles não tivessem existido nunca, embora estivessem ali. Eu os olhava, sabia que os olhava, mas nada vinha à minha cabeça, nenhum tipo de atitude me tomava. Eram oito, e embora estivessem no horizonte, se aproximavam a uma velocidade assustadora. Não havia gaivotas, peixes ou qualquer tipo de animal. Em outros tempos, eu teria intuído um golfinho; agora, via a movimentação em linha reta daqueles animais de ferro, chaminés e cargas. Como se percebessem de chofre minha ataraxia, frearam imediatamente, pararam, e por três segundos que talvez tenham sido vinte, pareceram boiar, simplesmente. Não havia qualquer tipo de neblina ou impedimento, e o céu era claro, azul. Não havia qualquer tipo de controle: estavam ao léu, sob o sol, e era ali, aquele movimento aleatório das ondas, o seu habitat natural. E então, todo movimento cessou. Como se o mar se congelasse, ou se fizesse calmo por intervenção divina, os navios pareceram atracados, sem indício qualquer de âncora. Permaneceram nesse ínterim por cinco minutos, estes contados (não sei explicar por que, mas no momento exato em que os percebi parados, comecei a contar, chegando ao número trezentos).
Trezentos. E, mais uma vez num golpe brusco, teve início uma dança sobre as águas, que não só pareceu movimentá-las de modo caótico, mas criar uma espécie de sinal ou ritual para abertura de um portal. Enquanto trocavam de posição, eu os observava e, pela primeira vez, percebia que fazia um esforço para compreendê-los. Até então, tudo era para mim observação, e apenas isso; o uso da visão e mais nada. Conforme mudavam de direção e assumiam diferentes velocidades e potências, pensei que pudesse haver algo. Mas como um grupo de jogadores de futebol americano depois de se reunir para combinar a estratégia, cada um dos navios seguiu para um lado, uns mais próximos, outros mais distantes. Sete deles ganharam o mar (lembro-me de tê-los contado em voz alta), e um veio em direção à ilha atrás de mim. Minhas braçadas e pernadas automáticas deram lugar a uma série de movimentos coordenados que, sem pensar, eu fazia para me posicionar, como por instinto, num determinado lugar, sabendo que seria aquele onde as ondas produzidas pela aproximação do cargueiro que restara.
A onda me pega. Pega e leva diretamente para a ilha, como uma mão, pousando-me sobre a areia branca. Nesse momento ainda não penso: embora tenha dito palavras, tenha tido impressões, não penso. Minha mente está vazia como em um ato de meditação, e sei que meus movimentos, embora precisos como os de um relógio, não são calculados. Fui entregue.
O navio está atracado. Não sei quanto tempo se passou desde que cheguei à areia. Olho em frente: Entre as palmeiras um coco (o cenário me parece familiar), o sal deve ter me carcomido de algum modo, a luz do sol – um vento – os tremores, a trégua (Japão) tudo aqui é tão limpo – um cheiro; A casa de verão, minha mãe, um amigo, a ilha, o capitão sai de dentro do navio. Sei que, de lá, ele me olhava.
            Talvez com rancor.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Manifesto imaginário diante de um caso não imaginário

(Supostamente escrito pelo capitão Bloch-Rochelle, em torno do ano de 1900, e encontrado entre seus arquivos pessoais).


Não há engodo em pensar, meus senhores e senhoras da grande França. Engodo algum. O engodo está justamente no não-pensar, no utilizar a mente para qualquer outro propósito que seja o de não-pensar. Ou antes, devo me corrigir, no utilizá-la para um propósito que seja o de não-pensar diante de outros, de outras. Diante do próximo, do distante, do estrangeiro ou do patrício.

Alguns nos têm acusado, com bastante veemência, de nos postarmos contra a nação francesa quando defendemos que um preconceito não deve guiar um julgamento. Dizem que prejudicamos a unidade nacional, que o país está desmoralizado em virtude das recentes crises, e que nossa ação, que se guia por uma “petulância de academia”, é um atentado à cultura.

A cultura, meus senhores e senhoras, é mais que um mero verniz, que o toque final da glória e da beleza de uma nação ou de um povo. A cultura não serve como objeto de exibição (embora tenha servido), como atestado de posição social (embora venha servindo) ou como uma pequena jóia adquirida a custo de muita economia visando algum tipo de auto-afirmação (embora, ultimamente, a metáfora tenha sido muito precisa na descrição do que se têm feito da mesma cultura).

A cultura, meus senhores e senhoras, é muito mais que o tal verniz; é um processo através do qual o homem, imerso em sensações que não pode compreender completamente, é forçado a utilizar a faculdade do pensar. Ainda que saiba que as obras de arte, que os objetos de cultura, não apelam exatamente a esta faculdade.

Alguns, perigosamente, crêem que associar a cultura e o pensar é um equívoco. O equívoco é não fazer a associação, por mais dolorosa que ela seja. A faculdade do pensar, meus senhores, não diz respeito (que perdoem-me os meus rigorosos colegas da filosofia e da lógica, que me têm sido tão amáveis, por me intrometer em seu domínio) única e exclusivamente à ordenação de categorias, à classificação, à transformação das coisas ao molde da mente pensante. A provocação da cultura, a grande provocação, é justamente jogar com esse molde. É transformá-lo, é quebrá-lo e vê-lo se reerguer de diversas formar.

A cultura, meus senhores e senhoras, nos atrapalha muito em nossas convicções e julgamentos. Coloca-os na berlinda. Assim, é impossível acessar a cultura tomado de conceitos estabelecidos antes do ato. Para acessá-la corretamente, para poder entrar em seus salões e beber de seu néctar, é necessário deixar as convicções do lado de fora da porta. Com isso, não quero dizer que o homem ou a mulher que acessa a cultura está sem convicções. Se elas forem suficientemente sólidas, suficientemente embasadas, persistirão, e ganharão força. Mas apenas ganharão força se forem questionadas. Levar, para um julgamento como o do caso Dreyfus, que passo a chamar aqui o caso Dreyfus-Zola, as concepções prévias sobre os judeus ou os socialistas é incorrer em erro tão grande quanto julgar que um romance de Zola é bom apenas por ter sido escrito por Zola. Afinal, o próprio Zola também se equivoca. É, ainda assim, o homem mais corajoso deste país. Por não temer seus erros, sabendo que são frutos, sempre, de seu pensar.

O pensar, meus senhores e senhoras, é representado, simples e somente, por esta faculdade de questionar e questionar-se. O não-pensar é exercido todas as vezes que uma convicção é repetida e repetida, sem cessar, em frases absurdas como “ainda que o réu seja inocente, é a unidade da nação que está em jogo”. A ideia da unidade da nação pode atropelar a inocência de um réu? Não, meus senhores, não pode.

No primeiro parágrafo deste manifesto, creio que deixei bem claro um equívoco cometido por mim. Além de tê-lo deixado claro, fiz uma correção ao meu erro, uma correção imediata, que visava a precisão. Iniciar uma ação por um erro pode ser considerado, por muitos, como tolice. Tolice maior ainda seria não iniciá-la, quando se supõe haver motivos para fazê-lo. Mas a grande estupidez, a grande idiotice (se me permitem o uso da palavra agressiva) seria, iniciada a ação, perceber nela um erro e não, imediata e energicamente, corrigi-lo, e tornar a correção pública. Principalmente se a referida ação disser respeito a outros. É neste espírito, senhores, que os exorto a corrigir seus erros, e a exigir de seus governantes, comandantes e generais que corrijam seus próprios erros. A glória não está em não errar; está, meus senhores e senhoras, em não-pensar.


Pensem, meus senhores e senhoras. Pensem incessantemente. E afastem de si o não-pensar!




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O texto acima é apenas um pequeno exercícios de imaginação, produzido em virtude de leituras recentes sobre a história da França.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Dudinca mata Dadinho



(minha parte no tríptico escrito em conjunto com o Guilherme de Faria Rodrigues e o Gabriel Medeiros.)

Ela entra na casa e bate a porta. A chave, tocada por seus dedos, rapidamente gira duas vezes em torno de seu próprio eixo. Suas costas se apóiam. Na madeira que a protege.

Um turbilhão de coisas passa por sua cabeça: como você chegou aqui – eu prefiro ele – somos uma irmandade, quase – o preço do tomate é um absurdo – o que é que você bebe – eu não costumo cozinhar para os outros – por que você acha  Milton Nascimento melhor que Chico? – quanto você sabe – o que é que você disse sobre o caso Dreyfus – quantos aqui neste prédio ouvem – bonsais – não quero me despedir de você – quando ele vem – tchau – o que você está fazendo aqui – eu prefiro ele – as suas unhas – as costas dele – quanto disso tudo; Ela fixa seu olhar no meio do copo, e a água, caindo do filtro, começa a preenchê-lo. Gira, imediatamente, o botão quando a água atinge o ponto no qual ela se refugiou. Toma, de um gole só, e repete a operação.

Repete a operação mais uma vez.

Começa a ouvir os passos dele, o irmão, cada vez mais altos. As pernas curtas dificultaram a subida pela escada. Ainda assim, conseguiu vencê-lo.

Ela sabe o que vai se seguir. Ele, o irmão, vai gritar e pedir que ela abra; vai chorar e pedir que ela explique. Mas não há nada a explicar.

Ela se dirige ao seu quarto, quando recebe uma mensagem em seu celular. A mensagem é do canalha, só pode estar atrasada, e diz: “Eu prefiro ele”. Alguns minutos atrás, o canalha gritava embaixo dela, depois em cima dela. Quase sem ar. Agora, “prefere ele”. Filho de uma

A foto (antiga) dos pais, ao lado do disco do Clube da Esquina onde escreveram “filhinha, não deixe que seu irmão ignore isso. Beijo, mamãe e papai”.

Papai e mamãe. Ela olha para os ventres dos dois, expostos.

A porta é socada. O irmão vai tentar entrar. Ela pega uma foto dos dois, ela com o irmão no colo. 15 anos de diferença. “Meu irmão poderia ter uma foto assim com esse filho de uma”, pensa. Suas costas ainda doem um pouco com os arranhões. Doem as costas do irmão também?

O som da porta arrombada a direciona. Rapidamente, a mão esquerda impulsiona metade da gaveta para a frente; a mão direita conduz o salto do canivete, que, com um estalido surdo, aterrissa na escrivaninha nova.

Ela abre o canivete. Fixa nele o seu olhar, como, segundos atrás, o fizera.