terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Listas I: Para Ler na Adolescência

Sim, voltamos pra idéia da lista. Por que raios, meu amigo? Porque bom, as listas são interessantes e ponto final. É, pois é, você não quer ficar tendo que justificar as coisas desse jeito até o fim da vida, ou quer?

Listas são uma construção artificial. São fruto de uma porrada de coisas: momento, temperamento, TPM, briga com a mãe, medo de perder o emprego, paixão (por uma mulher, por um homem ou por um autor), bronca do orientador, surtos com a nota de uma prova de língua. Por que raios então uma coisa tão arbitrária é útil? Simples, benzinho: em primeiro lugar, porque você, que faz uma lista, é forçado a pensar, a organizar, a selecionar. Debaixo de todas essas pressões. É, meu amigo, você faz listas: de prioridades, de pratos pro seu casamento, de compras de supermercado. É um ótimo exercício priorizar. E é um ótimo exercício rever as suas listas, corrigi-las, guardá-las com data. E pra quem lê, então, qual é a utilidade? Bom, isso é o que nós chamamos de pergunta aberta. Experimente uma ou duas listas (você não experimenta o doce que a mãe do seu amigo fez? Vale a pena perder um tempo com coisa nova de vez em quando). Experimente dez ou quinze se for o caso. Quase sempre há algo que sutilmente liga os elementos dela. E que os liga à sua vida.

Rapidamente sobre essa lista: não li todos esses livros durante a adolescência. São sete, porque sete é um número que me agrada. Um breve (brevíssimo) comentário sobre eles. São, também, os livros que eu gostaria de ter lido quando adolescente; que darei para minha sobrinha quando ela for adolescente; que indico para os adolescentes que me pedem recomendações eventuais. Ah, um último adendo: os comentários são extremamente redutores, ok meninos e meninas? Descubram o motivo real de ler esses livros por vocês mesmos.

1. A Náusea – Jean-Paul Sartre: O topo da lista tinha de ir pra um livro que eu realmente li durante a adolescência. Por que esse livro de maníaco depressivo? Porque é legal aprender a passar mal com livros na adolescência; e porque é legal entender que não é só você que tem crises de “pra que raios eu vou usar tudo o que aprendo na minha vida?”

2. Demian – Herman Hesse: cliché, cliché, cliché … Livro clássico sobre um adolescente que se descobre. E sim, meu amigo, talvez você precise se descobrir.

3. Risíveis Amores – Milan Kundera: Se você um dia pretende entrar em contato com outra visão sobre o amor que não a de “fogo que arde sem se ver”, dê uma ligadinha pro tio Kundera.

4. O Brinquedo Raivoso – Roberto Arlt: um livro sobre um adolescente delinqüente. Provavelmente, ocuparia o topo da lista se eu escrevesse esse artigo amanhã ou depois.

5. Estrela Distante – Roberto Bolaño: Acho que o comentário mais adequado é: um romance policial de tirar o fôlego! (você descobre a surpresinha ou eu estrago? Ele não é policial... do jeito... hm... que você imagina; o cara DEITA).

6. A Filosofia de Andy Warhol – Andy Warhol: Não querido, não é uma introdução à filosofia pra você. É só pra você dar umas risadas também. Quando fechar o livro, é legal se perguntar “de que raios eu estou rindo”? Quem sabe assim você entenda o que é, enfim, o humor. Se entender, poste aqui, ok? Estamos esperando. Ansiosamente.

7. Paranóia – Roberto Piva: Pelo menos um de poesia. Faz um esforcinho vai. Daí talvez seja a hora de repensar alguns xingamentos que você usa; algumas palavras de baixo calão; alguns temas desagradáveis sobre os quais as pessoas insistem em conversar. (Se tiver tempo, leia Rimbaud também, ok?)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

My Idea of Fun

*Notas preliminares:

1- Estamos de volta depois de um mês de “férias”, inteiramente dedicado à minha monografia de conclusão de curso. Correria!

2- Esse texto é dedicado à Isabelle Penha Ribeiro, amiga querida, cujo trabalho e dedicação tenho a honra de acompanhar de perto. Agradecimento especial a ela pelo convite para publicar o texto A Reinvenção de Orfeu na revista de cultura que a tem como uma das editoras, a Pop-Up. Não percam!

**********

Ele é magrelo, parece uma lombriga, é bem velho e faz você ter inveja da sua energia quando pula, canta e domina o palco. Por mais de uma hora e meia. E além de tudo ele é meio estranho. Iggy Pop é bem diferente dos Beatles, dos Rolling Stones, e também não é nada parecido com os ídolos Jimmy Hendrix e Janis Joplin. Enquanto eles aparecem em grupos de semelhantes, a figura de Iggy se destaca brutalmente dos demais Stooges. Sim, o cara é diferente, e a música dele é diferente também. Afinal, não se declara o amor, via de regra, cantando now I wanna be your dog; para conseguir achar isso maravilhoso (e acreditem meninos e meninas, é maravilhoso) é preciso se deixar levar por aquilo que Iggy pensa, fazer um pacto com ele ao longo das músicas. Ou seja: dar um peteleco na preguiça.

Tudo bem, mas você não tem que criar coragem de abrir uma música. Seu amigo põe no carro, ou calha de estar tocando no café da esquina. Eventualmente, uma homenagem à sua tenista predileta no Youtube a traz como trilha sonora... E depois, sempre temos o maravilhoso “O que você está ouvindo” no MSN, perfeito pros dias de tédio musical. Mas raramente alguém lê pra você um trecho de livro; nunca você vai cruzar com um à toa. Sim, podem falar algo, mas daí até chegarmos às letrinhas miúdas... Principalmente quando o livro nos dá a maldita preguiça. E no geral, isso está relacionado ao tamanho do dito cujo.

Sim, livros de oitocentas ou novecentas páginas... QUÊ? Sim, livros de duas mil páginas em oito volumes. Como, mas como raios se animar pra ler um livro que talvez leve o mês inteiro ou até um ano pra chegar ao fim? Olhamos a Montanha Mágica, de Thomas Mann, e num primeiro momento ela é muito mais montanha. Sim, é preciso persistir; livros como esse, no geral, dão muito pouco de si aos leitores no começo, vão se revelando aos poucos. Sim, enquanto seu amigo comentou dos últimos cinco escritores que leu, você diz com orgulho “cheguei até a metade!”. Escalar essas páginas requer uma vontade especial de ver o mundo do topo.

É só de lá, no entanto, que podemos ver um certo tipo de mágica. É que por serem tão cheiso de detalhes, se ocuparem tanto tempo de alguns personagens e nos manterem curiosos pelo mundo que nos oferecem, esses catataus de trocentas-e-lá-vai-pedrada páginas revelam algumas coisas que os livros pequenos não têm. O camarada até fica chato, fala sempre do mesmo assunto, conta a ação do livro como se fosse fofoca quentinha; perde a noção de que não são todos os que estão vivendo naquele lugar. Chega, inclusive, a marcar na agenda o horário da palestra do Dr. Krokowski, ou então passar raiva por não receber um convite para o sarau da Duquesa de Guermantes. Que nem quando começa a namorar; só que é mais difícil dizer que não se vai com a cara de uma namorada de oitocentas páginas.

O pacto é difícil, mas vale a pena. É preciso, vez ou outra, deixar de sair um diazinho; talvez, pensar em não ler a revista semanal, em sacrificar uma hora do dia durante um bom tempo. O livro está lá pra ser enfrentado, e não adianta querer calcular quão mais próximo se está do fim. Aos poucos, o tesão aumenta; você entende uma coisa, entende outra, as engrenagens se encaixam. Você é surpreendido, e a surpresa te deixa puto da vida. Você se programou pra ler trinta páginas no dia, e lê cinqüenta, sessenta. Um dia engata; lê cem. E era um sábado! Finalmente, você entende pra que raios servem os domingos, do mesmo modo como entendeu por que três acordes eram suficientes, ou o que tinha a ver o saxofone com o rock. Você cria uma nova idéia sobre diversão, e urra pedindo pro livro levá-lo para passear. Com a coleira e a guia entre os dentes.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Bode Pós-Livro

Conheci meu livro preferido, como se deve conhecer essas coisas, numa “conversa de bar”. Eu, uma conhecida (que eu mal conhecia) e uma amiga dela falávamos sobre livros. A amiga, digamos “Molly”, dizia que não conseguia terminar um livro. Nunca. Não interessava o quão bom ele fosse, ou quanto ele se relacionasse com a vida dela. Pelo que dizia, Molly lia. Muito. Só não conseguia chegar aos finais. E ela me dizia isso porque esse livro, A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, era o primeiro livro “sério”, adulto, que ela terminava. Pensei “caramba, preciso ler isso”, igualmente influenciado pela minha sede de moleque de 17 anos que queria ler todos os romances bons do mundo e pela minha sede de moleque de 17 anos de impressionar a menina e poder, um dia, levá-la pra cama ou pro canto.

Óbvio que nunca mais conversamos. Óbvio. Mas comprei o livro no dia seguinte, e em dois dias eu engoli aquelas páginas. Precisei, imediatamente, recomeçar o livro, assim que tinha terminado. Dessa vez, com mais vagar, demorei uma semana. Não li virando as noites (como costumava) sem despregar os olhos das linhas, mas parando, me deitando, encostando a cabeça na parede, no travesseiro, no chão, onde desse. O processo de leitura tinha sido completamente diferente. Até que, no sétimo dia, quando terminei a única releitura que seguiu imediatamente a leitura na minha vida, bateu. O livro tinha acabado, e o meu convívio com aquelas personagens também. Eu poderia voltar a ele, poderia reler uma terceira vez ou me tornar monomaníaco e reler uma oitava, uma nona, uma vigésima vez. Mas tinha apreendido uma parte suficiente do livro. Ele tinha realizado um processo na minha cabeça, na minha alma, no meu corpo, e eu aproveitei esse processo e sofri com ele e me deliciei com o sofrimento. Só que o livro acabou, o processo acabou, e era preciso voltar pro mundo. Bateu.

Por que raios Molly (que vi esses dias num bar, alguns quilos mais gorda e falando um monte de merda) não terminava os livros? Não tinha parado pra pensar, embora não fosse a primeira vez que eu sentia um final. Nos filmes geralmente era fácil, todo o ritual: a luz acendendo, o “massa né?” do amigo ao lado, a inveja dos casais que perderam a última cena pra virar protagonistas de alguma outra coisa, a vontade de ir ao banheiro depois de mais de meio litro de coca-cola aguada... Em casa então, um dos cômodos claros (banheiro ou cozinha) resolvia o problema. É só comer um pedaço de queijo, ou tomar um coca, ou dar uma mijada e tudo fica certo. E quando se termina um livro? O mais sensato a fazer, talvez, seja ligar pro amigo que o recomendou (quando ele existe), mas pode ser tarde. Ele pode não se lembrar da cena que você quer comentar e tudo... O que é que se vai fazer no exato momento em que a última palavra aparece, e resta só fechar a capa?

Claro que os livros operam de formas diferentes nas pessoas. O fim, no entanto, é sempre uma experiência parecida, e por isso dá vontade de ir logo pra ele, acabara, começar o próximo livro ou não começar mais nada. Temos que nos despedir daqueles personagens, daquela atmosfera. E mais do que isso: quando a narrativa acaba, já não há mais diferença ou fronteira entre você e ela. Aquelas páginas fazem parte do leitor, e não é possível mais “viajar”, “se sentir em outro lugar” ou qualquer uma dessas baboseiras que os falsos amantes de literatura clamam fazer. Fim da linha, e agora é que vamos ver se o livro é bom. Porque os bons estão presentes, não onipresentes, mas à espreita numa esquina. Versos e pequenos fragmentos narrativos nos aguardam, depois do fim de uma leitura. Surgem inevitavelmente, e é esse o temor do final. O bode que se segue ao texto, e o silêncio que vem com ele. A certeza de que sim, Molly, agora que você acabou esse livro ele é seu. E não interessa quanta merda você fale no bar, nem quantos quilos engorde. Ele ainda lhe alcança. E quando bate, querida...

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A Literatura e as Idéias

Os livros são objetos muitíssimo sérios. Os que recorrem de alguma forma ao humor, acima de todos os outros. Porque escrever, não na acepção do verbo que significa deitar palavras, mas naquela que quer dizer organizá-las, dá-las algum tipo de forma, de amarração, isso é muitíssimo grave. Não pelo fato de exigir tempo, esforço, um conhecimento mínimo e muita paciência (embora exija um belo bocado disso tudo). Não; escrever é sério porque é uma ação que ultrapassa as barreiras do privado, porque atinge a esfera do outro. Porque as palavras podem ser achadas, e uma vez achadas, podem ser incorporadas.

Ninguém duvidará do poder sobre as idéias que os livros exercem, ficção ou não. Pregados (muitas vezes arbitrariamente) aos pensamentos do indivíduo, os trechos escritos em uma determinada ocasião percorrem túneis a velocidades supersônicas, em cujo interior são desmembrados, pelados, desprovidos muitas vezes de sua pele e de sua estrutura óssea para chegar a uma outra mesa como ingrediente ou tempero. O percurso os aquece, de modo que ainda que sejam requentados, farão parte da refeição sem se acusar. Descascados, moídos e requentados, Nabokov, Rosa, Nietzsche, Sartre e outros nomes são postos aí, como uma pequena degustação. E sabem a mediocridade.

Esse não é, no entanto, um problema. Que se reserve, pelo amor da memória, o direito a adolescentes ou adolescentes tardios de citar quem queiram em suas páginas de redes sociais; vá lá. Não é essa a questão. Até porque, as coisas isoladas, assim, têm o direito a ter significação própria, inclusas no contexto de vida da pessoa. O problema é que essas idéias circulam, e aquela primeira prática, a de deitar palavras sobre um papel, se confunde rapidamente com a segunda. Isso é um primeiro perigo. Pois a partir do momento em que as grandes idéias que foram diluídas em água são passíveis de comparação com a água pura, ali sim há uma anomalia. Perde-se a fronteira da seriedade.

Parte do respeito à escrita e à literatura vem do comprometimento com a tentativa de fazer literatura, e principalmente de fazer circular literatura. A ausência de pretensões, na boca de tantos os que se lançam ao duro trabalho do livro, está tão na moda quanto a pretensão total. São recursos, é verdade; mas se tornam nefastos quando são o único recurso. Digo e repito: a literatura é séria. E é séria porque é um ato que envolve mais de uma pessoa; caia ela em mãos erradas e povoará os mais horripilantes pronunciamentos. Ainda que não se acredite na sua força.

O século XX viu as regras da literatura serem postas abaixo, como as da arte. Viu o esforço monumental para recriá-las, para dar sentido ao que já não parecia ter sentido. Nossos antepassados tentaram muito: colagem de fragmentos, reescritura, outros critérios, ironia, incorporação da crise. Tudo isso se tornou matéria de arte e matéria de literatura; nada disso ficou nulo como veículo de idéias. Mais ou menos acessíveis, da destruição do passado de Marinetti à interpretação do mundo como museu de Duchamps, tudo teve devidamente uma insinuação à mente. Essas insinuações, no entanto, não foram gratuitas; foram frutos de esforços, e sua compreensão também foi fruto de grandes esforços. Se regras foram abolidas, isso não aconteceu para que fossem ignoradas, e sim para que fossem levadas em conta. Lembrem-se de que derrubamos esses prédios.

Por isso a reciclagem de idéias é tão perigosa. Não apenas na literatura ou na arte; não se pode perder de vista que a escrita automática de Breton, por exemplo, só podia ocorrer porque se acreditava num resultado da escrita automática que tivesse um comprometimento com a literatura. Qualquer pessoa que deseje criar algo precisa estar seriamente engajada em sua criação, seja ela artística, filosófica ou política. Porque afinal, nada está tão ruim que não possa piorar. Nem os textos alegóricos.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A reinvenção de Orfeu

Há um determinado grupo de homens e mulheres cuja imagem preserva um frescor eterno. Não interessa aonde se vá ou em que classe social se procure, seus rostos estão lá em algum canto. Buda, Che Guevara, Kurt Cobain... figuras que não apenas preservam-se enquanto selo, mas que em alguma medida permitem, a quem quer que os olhe, o vislumbre de uma idéia. Claro que apenas algumas pessoas terão acesso a esse pensamento, e que haverá visões diferentes sobre ele. Afinal, um Buda colocado por uma típica desperate housewife em sua casa é, a rigor, um objeto decorativo para trazer paz e equilíbrio. Para um iogue, no entanto, aquele homem sentado na posição da flor de lótus representa uma série de conhecimentos e um caminho a ser trilhado pelo corpo e pelo espírito.

A imagem de Arthur Rimbaud é em si completamente atípica entre os ídolos de juventude. Em primeiro lugar por se tratar de um homem do século XIX, quando via de regra as estampas nas camisetas e nos álbuns de Orkut são de fotografias do século XX. Afinal, as pessoas do século XIX parecem ter uma característica unificadora: todas são essencialmente feias (vide Rainha Victoria, Charles Darwin, Leon Tolstoi e Dom Pedro II). A exceção é um moleque de olhos profundamente azuis e tez muito clara, que escandalizou e encantou Paris com sua poesia, seu comportamento e sua beleza. Rimbaud nunca pareceu ter nascido para integrar as fileiras da normalidade.

Se o poeta francês se tornou o estereótipo do jovem escritor, isso se deve, mormente, ao poder de sua escrita, que encantou completamente uma outra figura pop bastante cultuada: Jim Morisson, vocalista da banda The Doors. Morisson não apenas escrevia poesia, mas acreditava ser a reencarnação de Rimbaud. Fez, com sua música, sua imagem e sua performance delirante no palco, com que os adjetivos que foram cunhados para seu ídolo lhe fossem perfeitamente aplicáveis: enfant térrible e poète maudit, o cantor trazia a seu público uma vontade de explosão e de libertação. Morisson retomava o verso de Rimbaud que serve de epígrafe a esse texto e que, uma vez escrito, permaneceu parado e incômodo entre duas fases da vida: a infância e a vida adulta. Os poetas não queriam mais voltar à primeira, e a segunda era entediante demais.

Esse grito parado no ar parecia chamar leitores e não leitores a algo outro. Não mais as besteiras da infância, com suas brincadeiras que preenchem a mimese porca da vida adulta. Não mais os caprichos dos deuses diante das necessidades de pagar aluguel, ter companhia e ser o oposto de imprestável. Dado do ponto mais alto de um entreposto, o brado rimbaudiano rompia com toda uma tradição que queria voltar à infância. Adoecia, e sua doença era a juventude; era estar louco, e nessa loucura encontrar a lucidez de antes da morte. Adoecia e era ele próprio a explosão do que definha. Antes de se tornar adulto, queria permanecer aquilo, todos os sentidos desregrados através de uma disciplina férrea.

O grito que erguia no ar não era, como muitos pensam, uma afirmação conclusiva típica de um adulto que sabe o que está falando. Era antes uma resposta, ensaiada por tantos, no momento em que as regras e as obrigações atingiam um auge cruel (com o ritmo da vida sendo cada vez mais ditado pelo relógio da torre). Não se pode ser sério aos dezessete anos. O verso que antecede esse primeiro verso (quase sempre o verso mais importante de um poema, essa presença invisível e imprescindível) é um simples clamor de seja sério, cresça. Não, Rimbaud não crescerá. E num momento em que se é necessário escolher “a carreira pro resto da vida” exatamente aos dezessete anos, sua imagem continuará sendo cultuada; seus versos continuarão sendo lidos e declamados. E cada vez com força e frescor maiores.

domingo, 29 de agosto de 2010

Para ler com os culhões I



Por que há aquela classe de escritores que relutamos em indicar pros nossos amigos, que não comentamos com nossos pais e que temos vergonha de ler na sala de espera do consultório? Não seria absurdo evocar qualquer um dos argumentos à mão: “o que importa é a cultura”; “você deveria se orgulhar por estar lendo”. É, mas na prática é bem diferente quando a mocinha bonitinha do elevador pergunta pra você sobre o que é esse tal de “A História do Olho” aí. A risadinha dela é inevitável, e o seu equilíbrio na tênue linha entre as vontades de se esconder e de esmurrá-la também.



O embaraço da situação não tem, no entanto, um motivo lógico. A reação é quase sempre involuntária, imediata; as pessoas riem. “Uma antologia do quê?” “De poesia erótica”. As pessoas riem... E depois nos perguntam o que é uma antologia. Fascinadas pelos pães quentinhos na lista de mais vendidos das revistas semanais, elas não poderão compreender ao certo por que você está lendo algo que não o ajuda a crescer espiritualmente, ou que não é “aplicável”. Até porque, tempo é dinheiro, e o ideal é usar o seu tempo de modo a “investir em capacitação”. A única resposta possível, nesse caso, é “ah, mas eu me divirto lendo”. O que pode ser verdade em alguns casos. Não nesse.



A classe de escritores que está em pauta não é simplesmente parte dos “chatos da literatura”. Os motivos que nos levam a não recomendar José Cardoso Pires são bem diferentes daqueles que restringem Roberto Piva ou Henry Miller. Embora seja verdade que todas as pessoas vêem pornografia em algum momento, ou pelo menos sonham em vê-la, essas mesmas pessoas não estão realmente dispostas a admitir isso. Ver elementos desse inominável em um “objeto de cultura” é perturbador. A literatura, sendo momento de diversão, não serve para que encaremos o sexo (e a vontade dele), a violência (e o impulso para ela), a perturbação. Afinal, o mundo já tem o suficiente disso. Não há motivo para usar a leitura, o momento de fantasia, para ver mais do mesmo.



O problema (e é um grande problema) é que não é mais do mesmo. A violência, a sexualidade e o desespero são, sim, temas que perpassam o cotidiano. Fazem-se presentes em pequenos momentos, nos quais nos dignamos a contemplá-los ou a vivê-los entre quatro paredes e nos jornais. Porque é esse o lugar deles. Exceto pelo fato de que não é esse o lugar que eles ocupam. Então aparecem esses malditos com burgueses perfeitos que são criminosos por prazer. Com suicídios horrendos e a dificuldade de lidar com eles. Com peças em que um bebê morre e, diante da fome, é devorado pelos adultos que o cercam. E o pior é que tudo isso não acontece num gueto, nem com algum maluco que tenha sido violentado quando criança: acontecem “sem explicação”, com gente “normal”.



Encarar esse tipo de escritor exige mais do que tempo e dinheiro: exige culhões. A entrega a eles, embora seja dolorosa, não é a contraparte de uma promessa de diversão nem de alívio. Não há investimento em nós mesmos e nem aplicabilidade. O que há, sim, é um tipo de vergonha misturado com uma sensação estranha de pertença ao mundo. Ao tocar temas que tentamos negar serem nossos também, esses homens não confortam; confrontam. E nós, leitores, também nos confrontamos, hábito tão démodé nesses dias. Coragem, dizemo-nos, coragem, e abra esse livro.



Talvez essa seja uma das poucas formas de entrarmos em contato justamente com o que escapa aos nossos conselheiros: aquilo que não confessamos. As coisas que nos fazem corar, e que no fundo são o que nos rege. As paixões para além da literatura, que só a Literatura toca. O motivo de mais profundo embaraço de cada leitor e de cada ser humano: aquilo que ele é de fato. Afinal, o que nos deveria dar vergonha não são os livros de Sade, Bolaño e Hilda Hilst (que ninguém sabe quem são de qualquer forma), e sim as revistas disponíveis à porta dos dentistas e dos médicos.

sábado, 14 de agosto de 2010

A natureza brutal das coisas

Embora não tenha tido contato com os papas do gênero (e mais especificamente com o sumo sacerdote Hunter S. Thompson), estive lendo livros que têm como proposta um maluco se meter no meio das coisas. Não, eles não ficam ali observando e tomando nota: eles vão. Pra máfia, pra pegação ou pra porrada: eles vão mesmo. E não saem de lá enquanto não presenciarem o último nível de loucura, que só acontece depois que se descobrem incorporados a seja lá o que foram investigar. Não confundir, por favor, com os jornalistas que fazem relatos precisos, cativantes e extremamente competentes de conflitos ou de certos acontecimentos. A diferença é brutal.


Ainda que o adjetivo pareça insólito, não haveria forma melhor de distinguir entre os dois tipos. O encontro dos jornalistas com a realidade acontece como uma colisão: munidos de cadernos, máquinas fotográficas e gravadores, eles se lançam a um fato ou a uma região. Seus escritos são sempre carregados de recepção, e também é assim que os leitores tocam os resultados. Livros cheios de dados, de quadros marcantes, capazes de tocar a fundo as concepções e a formação intelectual de quem com eles se depara. O sujeito desses livros é uma realidade. O autor, assim, é um meio, alguém que por algum senso de responsabilidade, profissionalismo ou recompensa se embrenhou em algo espinhoso o suficiente para valer um número satisfatório de páginas.


O tal “maluco que se mete no meio das coisas” é ele próprio o sujeito dos livros que escreve. Há informação nesses livros, e muita; mas embora ela não seja ocasional, pode-se dizer que não interessa tanto. O que fascina é o modo como a realidade é ao mesmo tempo violenta e visceral, como ela tem um impacto que leva o autor à náusea. Transformados aos poucos em personagens de literatura, os homens que se propõem a esse tipo de livro realizam uma experiência com seus corpos, suas mentes e sua escrita. Não estão apenas munidos de seus elegantes moleskinis ou de gravadores: trazem na bagagem seus braços, seus hábitos, suas gírias, seu fígado e seu(s) senso(s) de verdade.


O grande barato que experimentamos com livros como esses não está em se informar sobre algo, mas em compartilhar a experiência de alguém em meio a qualquer coisa. Não somos convidados a um cenário ou a um fato ao abrir uma obra dessas: como leitores, somos bem-vindos a uma experiência que rarefaz o ar quando aproveitada. A jornada realizada é pelas entranhas de escritores. Não são diários, nem relatos de viagem, nem livros-reportagem, e são um pouco de cada uma dessas coisas. São, em última instância, tentativas de narrar, de dividir o que um corpo e uma mente foram capazes de apreender, suportar e carregar.


De certa forma, esses livros nos fazem uma proposta muito mais indecente que uma acusação de ignorância ou de falta de engajamento. Ao conclamar o leitor, homens de escrita bruta fazem um convite para o conhecimento de certos limites do outro. Mas o outro, como bem sabe qualquer um que esteja munido de um espelho e de uma janela, é também o próprio. São livros dispostos a apontar para os vizinhos do leitor, para seus parentes e para seus amigos. Mas são fundamentalmente livros sobre nós mesmos, sobre nossos desejos e sobre nossas naturezas. Por isso, vale a pena se entregar a mais que uma contemplação sentimental ou técnica das coisas de vez em quando. Afinal, o coração que também bate no peito dos despirocados pode ser tão sujo quanto o nosso.



Recomendação: Entre os Vândalos, de Bill Buford, pela Companhia de Bolso.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Coisas para se ter em mente antes de escrever

Sim, infelizmente temos que fazer isso. É um dever moral aconselhar os pequenos. O motivo desse texto é simples: metade dos imbecis que encosta um lápis num papel ou os dedos no teclado e começa a disparar palavras contra (sim, contra) um texto diz que está escrevendo.

  1. Ninguém vai dar pra você depois de ler o que você escreveu.
  2. Ninguém mesmo. Nem a menina que disse que daria pro seu poeta preferido. Ela não daria.
  3. Não use um título pretensioso.
  4. A linha entre fazer uma boa piada e ser uma grande piada é muito mais tênue do que você imagina.
  5. Não cite nenhum autor que seus pais conheçam.
  6. Pelo amor de Deus, principalmente nenhum autor que seus pais elogiem. A não ser, claro, que eles sejam de uma família de críticos literários. Mas aí qual é a graça de não surpreendê-los?
  7. Você não tem nada a ensinar pra ninguém.
  8. Se você quer expressar seus sentimentos escrevendo, não escreva.
  9. Se você tem mais de 17 anos e é fã incondicional da Clarice Lispector, não escreva.
  10. Se você tem menos de 17 anos e é fã incondicional da Clarice Lispector, não escreva. Nem fale de livros.
  11. Se você não consegue fazer seus amigos rirem, não tente ser engraçado.
  12. O leitor é quase sempre mais burro que o escritor. Mas lembre-se: você não é um escritor.
  13. Ninguém quer saber sobre a sua vida depois que ouviram a história da Christiane F., a da Bruna Surfistinha e a do Henry Chinaski.
  14. Se você vai escrever sobre uma experiência indescritível, não escreva.
  15. Diga o que você tem a dizer. Nem mais, nem menos.
  16. Se você tem um mestre, você é ou um bundão ou um lambedor de saco.
  17. Estude o autor que você odeia. Só pra ter certeza de que o que ele faz é ruim, e caso afirmativo, saber como não fazer o mesmo.
  18. Escrever sobre quando você comeu a irmã do amigo: mau. Escrever sobre quando o amigo comeu a sua irmã: bom. Escrever sobre quando você arrebentou a cara do amigo por ter comido a sua irmã: péssimo.
  19. Não prove uma tese. Nem defensa uma tese. Nem mesmo tenha uma tese.
  20. Se você vai escrever “sobre...”, não escreva.
  21. Você só deveria poder fazer paródia de algum autor ou livro depois dos 40 anos.
  22. O mundo não é mais interessante: você só vive uma “história da sua vida”. E um bom livro ou tem uma PUTA HISTÓRIA, ou funciona engatando uma que seja ótima na outra. Então de novo: não escreva sobre a sua vida.
  23. Por conta disso, roube descaradamente as histórias dos seus amigos. Mas só se você tiver certeza de que escreve melhor que eles.
  24. Não peça opinião sobre o que você está escrevendo pra sua(seu) namorada(o). Lembre-se de que na maioria dos casos você ainda não se convenceu 100% de que ela(e) não é burra(o).
  25. Só escreva quando você for capaz de conversar com alguém sobre os livros que leu. E claro, quando essa conversa puder se estender ad aeternum.