Se tenho
saudades de algo, é do dia em que, tendo já comprado "Estorvo", de
Chico Buarque, me sobrara quase a metade de um vale presente da livraria
saraiva, e, indeciso, resolvi escolher um outro livro. Passei os olhos por
algumas estantes, mas, sendo estudante do terceiro ano do colegial, me faltava
repertório: é comum, nessa época, adquirirmos os livros de que nossos amigos
gostam, ter muito receio com aqueles que nossos pais recomendam e ter medo
daqueles que os professores de literatura dizem ser os melhores.
Em algum
momento, tentava me lembrar de alguma recomendação, enquanto meus olhos,
vagabundos, escalavam as letras deitadas dos títulos sem que meu pescoço se
flexionasse. E quando minha memória me incomodava, por se recusar a trabalhar,
a de um elefante é que se apresentou. Eu lera (claro!) no jornal, alguns dias
atrás, uma matéria sobre António Lobo Antunes, de quem nada conhecia. O livro
era curto e, além disso, quase não excedia o valor do vale. Coincidências
financeiras. Achara meu segundo livro e, em breve, estaria lendo Chico Buarque,
cujo show eu veria em algumas semanas, se conseguisse o ingresso que
desesperadamente procurava.
No caminho
para casa, a orelha do livro me fizera sentir um frio na barriga: será que é
esse, e não “Estorvo”, o livro que lerei à noite? Sei que gosto do tal do
Chico, desse carioca dos olhos azuis e de voz de coitadinho que precisa de
amparo (e a quem metade das mulheres do país parece querer amparar); por que
não, então, dar uma chance para o tal
Lobo Antunes, a despeito de ele ter metido a boca em José Saramago? Guerra de
Angola, desmanche do Império Colonial Português... Abri o livro.
O Hospital em que trabalhava era o mesmo a
que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de
junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme
vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a
arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos,
metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à
esquina da enfermaria de paste de plástico no sovaco a estender um papelucho
imperativo e suplicante:
Assim escrito,
foi assim que li: de um gole só, rápido, pensando “car...”. E antes que eu
pudesse concluir o pensamento, as próximas frases se engatavam. Aparentemente,
eu não tinha comprado um livro, mas um feitiço que, uma vez lido, me
transportaria não para outra dimensão, e sim para dentro da mente de alguém.
Ter aprendido o que era um fluxo de consciência foi o equivalente, na minha
vida, a ser abduzido. Há quem diga que sem as luzes, os instrumentos afiados e
a sabedoria milenar, mas não: havia luzes quando as armas disparavam nas noites
angolanas, facas perfuravam a carne de soldados, para salvá-los da morte ou da
guerra; e a sabedoria milenar, meu Deus, ela tinha que existir em algum lugar. De
novo o palavrão se formava em minha mente. Antes que eu pudesse terminá-lo,
bati o livro.
Li Memória de
Elefante em dois dias e duas tacadas: a primeira, entre a chegada em casa, às
nove e meia da noite, e as quatro da manhã. A segunda, entre as oito da manhã e
o meio-dia. Um ano depois, já estudante de literatura, leria Os Cus de Judas. E
igualmente me apaixonaria por suas primeiras palavras, que cito de cor a quem
me perguntar na rua: “Do que eu mais gostava no Jardim Zoológico era o rinque
de patinagem...”. Anos depois, morando em Essen, na Alemanha, eu finalmente
patinaria – no gelo – e a primeira coisa em que pensaria, antes do frio ou das
excelentes companhias, era no livro.
Se tenho
saudades de algo, é da fúria com que devorei Memória de Elefante, do modo como imediatamente, ao conhecer Lobo
Antunes, tive que alterar o tamanho de todos os outros escritores que moravam
no meu parco repertório. Troquei cadeiras, removi presentes, redistribuí os
louros. E como um tirano que encontra uma nova amante, festejei uma nova
divindade no meu panteão. Do vinho dessas festas é que tenho mais
saudades.
Li,
eventualmente, Estorvo. E graças a uma vizinha maravilhosa, fui ao show do Chico.