quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Carta aberta aos implicados no fechamento do Cine Topázio

Caros amigos,

o propósito desta carta é, antes de tudo, uma ação conjunta pela manutenção do Cine Topázio. Pedimos a sua atenção, leitor. As duas salas de cinema localizadas no Parque Prado são as últimas salas de cinema que se dedicam a exibir filmes fora do circuito comercial na cidade de Campinas. São nossa única alternativa atual de ir ao cinema não como consumidores, que escolhem o produto que lhes agrada e vão sabendo o que esperar, mas como espectadores que não sabem o que lhes espera, e que são surpreendidos pelo novo, pelo belo. Que sentem o cinema como a arte que é. Dirigimo-nos, pois, aos três principais implicados no fechamento do Topázio.

Em primeiro lugar, ao(s) dono(s) do cinema: dialogue(m) conosco. Sabemos que a viabilidade comercial de um cinema alternativo em Campinas parece complicada. No entanto, há um público, e cremos que, com o estímulo e a condução certas, a existência da sala pode se viabilizar em termos comerciais. Talvez o cinema não seja a alternativa mais lucrativa no complexo do shopping center localizado no Parque Prado.  Mas pode ser um atrativo a um público diferente, um diferencial e uma grande ação de divulgação, caso a campanha aqui proposta dê certo. Pedimos, pois, a paciência e o diálogo dos senhores. Pedimos o adiamento de seus planos por seis meses.

Em segundo lugar, ao Secretário de Cultura da cidade de Campinas, o senhor Ney Carrasco: sabemos que esse assunto, embora esteja além da sua alçada, também o implica. Vemos sua preocupação com a oferta de cultura na cidade, e gostaríamos de pedir sua intervenção, com sua experiência no meio cultural, sua posição no Município e sua sensibilidade. Gostaríamos que o senhor pudesse se dispor a fazer parte desse diálogo, cujo objetivo é construir um plano de viabilização da existência do Cine Topázio. A cidade, assim, não perderia seu único cinema comercial alternativo ao circuito hollywoodiano.

Por fim, dirigimo-nos ao público da cidade e da região metropolitana de Campinas, àqueles que, de alguma maneira, valorizam o cinema. Essa é a missão mais difícil dessa carta, mas a crença na mobilização e na participação da sociedade civil nos move. Pedimos a cada um daqueles que não deseja o fechamento do cinema e que leu essa carta e a compartilhou que se comprometa a, entre os meses de novembro e dezembro, ir pelo menos três vezes ao Cine Topázio no mês de novembro. Escolha seus filmes ou não os escolha: vá e seja surpreendido. Converse com seus amigos sobre eles. Vá ao cinema e publique, nas redes sociais, o que viu de interessante no filme. Convide seus amigos, sua família. Professores, comentem com seus alunos, organizem excursões, formais ou informais, para levá-los ao cinema e conhecer o patrimônio cultural da cidade. Vocês são agentes da educação. Pais: levem seus filhos ao cinema, dialoguem sobre os temas dos filmes com eles. Encontrem algumas horas em suas semanas, em três dos trinta dias de novembro. É isso o que pedimos de vocês. Que mostrem ao(s) dono(s) e ao Secretário de Cultura que é possível, com um plano de ação conjunta, manter o Cine Topázio funcionando.


Que essa carta circule, que seja lida. Que a ação se desenvolva. Que seja sentida a mudança no Cine Topázio. Que não tratemos o assunto com nostalgia, tristeza e derrota. Que mostremos que, agindo, podemos transformar a cidade. Utilizemos a força das redes sociais, dos blogs, para divulgá-la, mas também utilizemos a força que vai além da internet, a força da ação. Esta carta é uma proposta viva. Que se considerem signatários dela todos aqueles que a compartilharem. Que todos aqueles que a compartilharem se comprometam à ação que ela propõe. Que ela chegue a todos a quem é destinada.

sábado, 21 de junho de 2014

A universidade pública e a escola pública


No clima de copa, e em uma copa tão festiva por uma zebra no grupo da morte, é fácil e gostoso se identificar com os pequenos. Grandes equipes como a Espanha, a Inglaterra, a Itália e o Uruguai chegam a um torneio desse com responsabilidades enormes, e acabam sendo surpreendidos por equipes de menor porte. Uma das grandes vantagens dessas equipes é poder jogar à vontade, uma vez que suas torcidas não as vaiarão nem as condenarão se perderem. É a Itália, é a Espanha, lutamos muito... Incorporo, então, tal clima, sabendo que minha opinião diante da de especialistas e professores da Unicamp é um nada, um sopro.
Francisco Foot-Hardman e Alcir Pécora, professores do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde estudei e estudo (embora meu contato com ambos não tenha ocorrido em salas de aula, apenas em corredores e em parcas ocasiões), assinam um texto publicado no Estadão há algum tempo (link aqui http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/171852-100-escola-publica.shtml ) no qual defendem a "ocupação de todas as vagas em universidades públicas por quem as merece de direito e de fato: estudantes de escolas públicas." O texto ressalta uma série de problemas importantes concernentes à educação básica estatal: a desvalorização dos professores, o aspecto restritivo e discriminatório do exame vestibular, os parcos investimentos, a mudança radical de perfil que existe entre educação básica pública e educação superior pública. Em seus diagnósticos, o texto é bastante acertado.
Gostaria, no entanto, de colocar em cheque a solução apresentada. O encaminhamento do texto de Foot e Pécora me parece muito mais soldado por meio de palavras de ordem que de argumentos em si. Hipocrisia, demagogia e democracia  (conceitos quase sempre complicados, voláteis e reversíveis ao longo das malhas textuais) saltam logo no início aos olhos do leitor. A solução apresentada para os problemas tão bem diagnosticados pelos dos professores universitários, a ocupação das vagas na universidade pública exclusivamente por alunos que cursaram o ensino básico em escolas públicas, embora pareça extremamente precisa num primeiro olhar, é vaga.
Em primeiro lugar, perguntemo-nos: há proporcionalidade? O número de alunos que cursam o ensino básico em escolas públicas no Brasil é equivalente ao número de vagas nas universidades públicas? É evidente que não. Apenas na região de campinas o número de alunos no terceiro ano das escolas públicas supera o número de vagas disponíveis em universidades públicas. E o daqueles egressos do terceiro ano que, tendo cursado o colegial, não quiseram ou não puderam passar diretamente ao ensino superior, mas que com a nova política vislumbrariam uma chance? E os oriundos daquelas regiões onde a distância mínima entre o centro de uma pequena cidade e uma universidade é maior que 200 km? Como no velho "slogan" dos efeitos do neoliberalismo no Brasil na década de 90, "não há vagas."
A proposição, então, precisaria encontrar uma forma de, no cerne do sistema plural proposto, inserir um mecanismo discriminatório? O desempenho escolar dos alunos nas escolas poderia ser uma maneira de decidir quais deles teriam, no mínimo, preferência. Não há, no entanto, uma realidade escolar no ensino público brasileiro que dê base para tanto. Se os professores, como bem diagnosticaram Foot e Pécora, são mal pagos, se as escolas têm uma infraestrutura parca, e se há tanta discrepância entre diferentes escolas, como levar em conta as avaliações como algo que confere qualquer tipo de valor utilizável como critério? Talvez, a solução fosse propor um tipo de avaliação que buscasse, menos que o conteúdo, analisar algumas competências, e que se estendesse nacionalmente, a alunos de todas as escolas públicas... E chamá-la, quem sabe, de Exame Nacional do Ensino Médio. Pois é.
Há ainda um terceiro problema: como definir em quais universidades estudariam cada estudante? Suponhamos que o curso de Estudos Literários, da Unicamp, fosse desejado por 120 estudantes oriundos de escolas públicas no Brasil inteiro no ano de 2015. Atualmente, o curso oferece 20 vagas. Quem teria preferência? Os moradores de Campinas? Os moradores de outras regiões? A preferência, talvez, pudesse ser estabelecida a partir de critérios socioeconômicos: aqueles que têm renda mais baixa teriam preferência. Mas e se ainda dentro desse critério houver empate? E o custo de vida do local de origem, será também levado em consideração? E no caso de falsificação dos questionários socioeconômicos, seria possível uma investigação? Haveria estrutura, funcionários, centros para isso?

A solução proposta pelos professores da Unicamp não é tão simples e direta quanto parece. A razão disso me parece bastante clara: políticas públicas de inclusão não são atos instantâneos, frutos de momento, mas longos, combatidos e achincalhados processos de maturação. Quase sempre, geram uma reação negativa calcada no ódio, e precisam se equilibrar na corda bamba até que seus primeiros resultados comecem a aparecer na forma de estatística - e quando os resultados aparecem, continuam a ser criticadas como antes, se não mais. Sempre ameaçados pela reação dos que desejam se manter no topo, os processos de inclusão social não podem correr o risco de ficar ao bel prazer de um mero ato, de uma canetada. Precisam ser algo gradual, crescente e definitivo, cujo resultado dê impulso a um ciclo. Palavras de ordem não são inclusivas ou efetivamente democráticas; são, no geral, hipócritas e demagógicas.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Jesus e Genésio

A internet anda confusa. Pudera: o fluxo cada vez mais frenético de informações cada vez mais superficiais, inverificáveis e repassadas aleatoriamente não poderia dar em outra coisa. "Compartilhei por que achei bonitinha a roupa que ela está usando na entrevista, embora ela fale um monte de besteira"; "Achei o trocadilho divertido". Algum dos meus amigos (perdão, Vinícius, acho que foi você ou o Alex, mas não tenho certeza) disse, nesse fim de semana, que quando alguém recorre à liberdade de expressão para justificar a validade do que disse, é por que falta qualquer outro argumento que valide o conteúdo ali expresso. Vaidade das vaidades: alguém, em algum momento, teve a brilhante ideia de louvar aqueles que "falam tudo o que pensam", como se pensar antes de falar ou se resguardar a ouvir fosse algum crime, ou se como toda opinião fosse válida, apenas por ser opinião. Fico com uma das frases de vovó: nascemos com dois ouvidos e uma boca, então temos a obrigação de ouvir mais do que falar. Liberdade de expressão, enquanto assunto público, é essencial; liberdade de expressão enquanto justificativa privada por um comentário infeliz, essa é horrorosa. Quanto mais palavras e informações circulam, menos claras as mensagens ficam. Movimentadas e turvas, as águas se tornam um material quase que opaco, de visibilidade limitada. Acalmadas e serenas, são lúcidas.

Tentemos, pois, acalmar um pouquinho as águas. Para um moleque (peço perdão ao alunos que lerem esse texto, pela repetição) que decide deixar a casa, a família, e jogar futebol, a decisão não é nada, nada fácil. Encarar tal responsabilidade, com medo constante de uma lesão que possa, em uma fase determinante, encerrar um sonho, é coisa para adulto. Parte desses adultos, com dezesseis, dezessete anos, é convidado para se mudar para algum país da Europa, onde deverá ser recebido por uma grande e fanática torcida, por companheiros de clube que admirará, e onde, ainda que no início não o sinta, se adaptará com facilidade. São as portas de um sonho se abrindo, tão importantes como a primeira iniciação científica, o cargo de importância na empresa júnior, o primeiro contrato fechado ou o favor (merecido) de um Professor Doutor ou Diretor Executivo. Sonho que pode adquirir contornos de pesadelo.

A torcida pode não ser tão calorosa; a língua pode parecer hostil, e as placas, incompreensíveis. Mas no momento em que a língua se torna um pouco mais clara, as torcidas (a sua e a adversária) é que se tornam hostis; sua atitude, incompreensível. Há também o recurso às linguagens universais: a genialidade e a imbecilidade, se têm algo em comum, é o fato de quase sempre conseguirem atravessar barreiras linguísticas como se essas simplesmente não existissem. E dentre as imbecilidades (ou devo dizer, bestialidades), talvez o racismo seja uma das mais violentas, incompreensíveis e absurdas. (Outras: o machismo, a intolerância religiosa, a homofobia.) O racismo, para tais garotos, ou, na linguagem da bola, para os moleques, pode se tornar uma barreira. Desprotegidos em muitos aspectos, num país estrangeiro, longe de amigos e de parte da família, o poder intimidador de atos de racismo pode ser o determinante para a desestabilização. Torcidas fanáticas tendem a atrair ou abrigar, por vezes, torcedores agressivos que, em acessos de irracionalidade lamentavelmente comuns, protagonizam violências ou perseguições a atletas. Um sonho que exige muito investimento (de dinheiro, de tempo, de vontade) pode, assim, vir a ser interrompido por conta de uma estupidez sem tamanho: o racismo. E para esses moleques, isso significa dar cinco passos para trás, desistir da faculdade no fim, abandonar a empresa antes daquela promoção. Significa voltar à estaca zero. E o pior: não por que ele tenha cometido uma falha, mas porque o mundo parece imbecil demais, mas tão imbecil, a ponto de oferecer sessões de humilhação gratuitas. Um padeiro que se recuse a atender alguém por seu sotaque; um transeunte que se recuse, pela cor da pele de outro, a parar para ouvi-lo; uma banana atirada no campo.

Nos últimos dias, chegou ao status de viral a atitude do jogador brasileiro Daniel Alves, do Barcelona (cuja torcida já havia recebido jogadores com ofensas racistas há alguns dias - veja aqui http://esportes.terra.com.br/futebol/internacional/espanha/campeonato-espanhol/retorno-do-barca-tem-racismo-a-neymar-e-time-sem-vergonha,0bfe16c8afa55410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html ), de pegar uma banana que havia sido atirada em sua direção e, em pouco menos de seis segundos, descascá-la, comê-la e dar prosseguimento ao jogo. A atitude não foi radical como a de Kevin Prince Boateng, que abandonou uma partida, ou a de Yayá Touré, que falou em um boicote de jogadores negros à Copa do Mundo de 2018,  na Rússia. E Daniel Alves não é um craque.... 

(para os alunos de literatura, esse aqui é um exemplo de digressão!) 

Mas antes de prosseguir, quero falar sobre o que é um craque... Um craque é alguém que, vestindo uma certa camisa, seja ela de seleção ou de clube, consegue, num espaço limitado, com tempo limitado e num instante exato, realizar uma jogada que se grava, para sempre, na memória do torcedor. Aquele momento deixa de pertencer ao homem que o protagonizou, e passa a pertencer a uma torcida, a cada torcedor. In our minds... Forever, diz o personagem torcedor do Manchester United no filme de Ken Loach com Eric Cantona. Algo semelhante ao que faz um poeta com um verso, um romancista com uma cena ou frase, um diretor com uma cena de um filme. In our minds forever, como algo muito maior que simplesmente aquele momento. Uma prova de que a beleza existe, de que a humanidade é capaz de produzi-la, de alcançá-la, e de unir desconhecidos, independente de cor de pele, religião, país de origem, etnia, em uma coisa só. ( https://www.youtube.com/watch?v=UaRi-79yRw4 ) Um grito, um suspiro, uma impossibilidade de falar, um choro reprimido. Isso é um craque: e esse momento é o que temos contra a feiúra do mundo, contra os inúmeros momentos em que a vontade é de parar, de desistir. De largar a faculdade no quinto ano, de desistir do emprego antes da promoção, de dar cinco passos para trás...

... e foi aí que Daniel Alves se tornou um craque. Em seis segundos, em torno da bandeirinha de escanteio, ele transformou a banana que lhe foi atirada, ofensa racista e imbecil, em simples fruta. Em algo que, para além de si, se tornou, ali, naquele momento, insignificante, incapaz de pará-lo. Incapaz de desestabilizá-lo, de fazê-lo desistir. Daniel reduziu o racismo, naquele momento, à insignificância a que deveria ter sido reduzido há muito tempo: o papel de simples imbecilidade de algum indivíduo cuja visão do mundo é muito distorcida. Usado como arma, o racismo deveria ser insignificante, e Daniel o fez ser insignificante: contra o sonho de jogar em um grande clube, contra a vontade de vencer, contra aquilo que significa ser jogador de futebol para alguém que quer ser jogador de futebol, a ofensa não significou absolutamente nada. É incapaz de pará-lo, de desestabilizá-lo, de atingi-lo. E aquele momento, senhores, ficará nas mentes desses garotos para sempre, como está na minha, inesquecível. Um bom admirador de futebol, assim como alguém sensível para a arte, sabe quando está diante de uma obra prima. Daniel foi autor de uma obra prima, e deve ser louvado. Muito louvado. Seu ato não foi a solução do problema, como um bom verso não é a salvação do mundo. Ambos, no entanto, tornam o problema e o mundo (fundidos, os dois, no mesmo impasse) um pouco menos asfixiantes.

Até que comece a confusão na internet. Caronistas e hashtags não são o ato de Daniel, mas consequência dele. Confundi-los seria como atribuir os crimes de Charles Manson aos Beatles, cuja canção, Helter Skelter, era, segundo o serial killer, inspiração para matar. O status de viral aparece, em parte, por conta do apoio prestado pelo companheiro Neymar (vide a primeira notícia que linkei ao texto) na forma de uma foto com uma banana. Neymar é menina dos olhos da publicidade, assessorado em tudo o que faz, e discutir a natureza de seu envolvimento e em que ponto termina a solidariedade e começa a promoção é entrar em florestas densas demais para o momento. O que interessa é: Neymar é jogador de futebol, vítima de racismo, e, no contexto, a foto fazia sentido pleno. Era apoio e solidariedade. O que não faz sentido são os caronistas: os milhares de pessoas que, ao mesmo tempo em que defendem o ato de Daniel, são a favor da elitização dos estádios de futebol, e defendem, dia a dia, a segregação em cujo cerne estão a discriminação e o racismo. Globais, globalizados ou globobos, não importa; louros morenos, carecas, cabeludos, como na cantiga de corda, também não importa. O que importa é a incoerência das atitudes, e o quanto o senso de oportunidade precede a reflexão. A décima terceira selfie da semana, a maneira de promover a nova peça de teatro... Tudo isso precede a reflexão de quem está sendo excluído do esporte pelo novo padrão "fifa" dos estádios, qual o espaço de convivência democrático que reúne todas as classes sociais, credos, cores de pele. No trecho do filme de Ken Loach que postei acima, o carteiro Eric _ amigo, de repente, do craque Eric Cantona _ se queixa da falta que sente de ir aos estádios. É a pasteurização do grito de gol, ou como diz Lúcio de Castro, o processo de Eugenização do futebol brasileiro. O futebol, espelho da sociedade, poderia aqui comentar rolezinhos, rolezões ou rolexes. Mas também a discussão sobre o futebol foi ocupada pela discussão sobre a camisa, a namorada e o comportamento fora de campo do jogador e do treinador. Triste momento, do qual nos consolam quem? Eles, os craques, e seus lances mágicos, artistas da bola que mantém viva a chama da paixão pelo esporte. E pela humanidade.

Não sem tempo: o Villareal identificou o atirador de bananas e o baniu de seu estádio. Privado do espetáculo, que vá aprontar em outra freguesia, e que esteja fichado, na polícia, passível de processo e punição. Cada instituição fazendo aquilo que lhe cabe, e com plena consciência do quanto isso afeta a outra. Aí, talvez, esteja um caminho para, de fato, atacar o problema.

Obrigado, Dani Alves. Não somos todos você não; você é craque.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Dois sonetos

Frutos de um feriado dedicado a duas leituras políticas, a de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, e a de O Conceito do Político, de Carl Schmitt, me apareceram esses dois sonetinhos. São tentativas iniciais de trabalhar com a forma soneto (ou como diz Jorge Luis Borges, de treinar a mão), e também são alfinetadinhas carinhosas nos amigos que sempre me ensinam, cada vez mais, o que é a política. Digo, nas redes sociais, que não devem ser levados a sério; aqui, não preciso dizê-lo. Alguém já levou alguma coisa escrita nesse blog a sério? Porque se levou... Baby, you got it all wrong. ;)

Soneto Maquiavélico

Temente apenas à sua própria mão
E justo quando há olhares ao redor
Prudente em ter a lâmina maior
que o código de leis de seu bolsão.

Por outros nobres tido como irmão,
Por saber nomes e brasões de cor,
Defende-se de seu berço menor
E é de berços menores campeão.

Não outorgou-lhe o sangue, mas a espada
o mando do que chama hoje de lar,
lar onde a gente canta governada.

Veio a mão dum tirano decepar
E ao tê-la no castelo pendurada
Se faz temer ainda mais que amar.


Soneto Schmittiano

Não cabe a mim dizer se é belo ou feio,
De um ato, se é bondosa a natureza,
Se é lucrativa ou onerosa a empresa;
São tais distinções inútil rodeio.

Digo aos que ainda me julgam com receio,
que a guerra, para mim, não tem beleza,
não traz dinheiro ou bem, mas é coesa,
e a coesão reside no seu seio.

Se falo em definir os inimigos
Não é pensando em quem vou destruir,
E sim de modo a organizar perigos.

Política, em essência, é definir
a quem não cabem mais quaisquer castigos
a não ser o de cessar de existir.

sábado, 8 de março de 2014

Pequeno episódio sobre um sultão

Sentado em sua cama mas em trajes reais, o sultão observa o movimento de uma borboleta azul. Atento aos seus movimentos, ele pensa em palavras para defini-lo: desenho, acrobacia, dança.
Seu grão-vizir, apavorado, o interrompe em seu ato de contemplação, abrindo a porta do quarto:
_Majestade, todos no palácio estão apavorados com a sua ausência.
O sultão não responde. Ainda não se acostumou às intromissões do velho vizir.
_Majestade, devo alertá-lo sobre a tradição que vosso avô e vosso pai cumpriram, e que deverá ser cumprida por vossa Majestade...
_... de que em todo aniversário o sultão deve comparecer diante de seu povo e celebrar uma festa, oferecendo ao povo uma demonstração de seu poder ou de sua sabedoria. Sim, obrigado. Agora, tenha a bondade de se retirar.
Já velho e cansado, o vizir se questionava sobre a real possibilidade de transformar aquele rapaz em um sultão à altura do pai. Parecia, nos últimos oito meses, ter apenas aprendido a veemência do comando.
Quebrada a concentração, ausente a admiração, a borboleta pareceu voar da mesma maneira, como alguém que se move simplesmente.
O vizir ordenou, a partir de sua experiência, que os preparativos da festa continuassem. Com vontade ou sem vontade, aquele moleque cumpriria a obrigação de sultão. Tudo precisava ser perfeito, e o vizir, com uma rispidez distante de seu habitual tratamento cortês dos súditos, comandava e fiscalizava cada tarefa singular.
Enquanto esbravejava com uma moça e um rapaz que tinham cometido erros grosseiros (ele, salgado demais um molho; ela, lascado uma taça por batê-la forte demais contra uma mesa), o vizir recebeu a ordem de ir ao encontro do sultão. Enfim, o moleque exigiria sua preparação especial para a festa! Enfim, as ordens chegariam, anunciando excentricidades no cardápio, nas cores e nas atrações! Enfim, o vizir conseguiria arrancar um momento de realeza do rapaz.
Chegando ao quarto, no entanto, encontrou o sultão contemplando um grilo com o mesmo afinco com que contemplava a borboleta.
_Meu caro vizir, sua dedicação é exemplar. Sua voz se faz ouvir enquanto você esbraveja com os súditos. A vibração de seus passos enérgicos invade meu quarto, e se faz sentir nos dosséis da minha cama. E embora eu não possa vê-lo com a porta fechada, sinto seu indicador apontando detalhes, falhar, correções.
_Muito obrigado, Majestade. O dia de hoje é um dia importante e especial, e vossa majestade precisa estar preparado e adequadamente ambientado.
_Vê, meu caro amigo e mestre e conselheiro, que é exatamente aí que você se engana? Hoje é um dia em que contemplar o grilo ou a borboleta deve consistir em contemplar o grilo ou a borboleta. Eu tentava, em vão, encontrar uma palavra que definisse aquilo que eu contemplava alguns minutos atrás. Pensei, por um momento, que aquele voo fosse uma espécie de presente de aniversário. E no entanto, não há aniversário. Hoje a borboleta voa como sempre voou, olhe-a eu ou não. Se em um único dia julgo que os saltos do grilo são maravilhosos, e que o voo da borboleta é maravilhoso, e que são dignos de meus olhos reais e de minha presença real, então todos os dias devo dar a eles meus olhos reais e minha presença real. Compreende, meu amigo?
_Compreendo, majestade. Devo, então, povoar nossa festa de grilhos e borboletas, e manter alguns no palácio para que vossa majestade possa vê-los em cada dia?
_Não, meu caro amigo. Deves olhar o grilo, que salta como um sultão, e a borboleta, que voa como um sultão, com olhos de sultão.
_Mas apenas vossa majestade tem olhos de sultão.
_Nem mesmo você está convencido de que eu tenha olhos e mãos de sultão, meu bom amigo. Ou uma voz de sultão, ou pensamentos de sultão. Você, o palácio, os olhares em volta, são quem opta por fazer-me sultão todos os dias. E você, eu, os olhares em volta, somos quem opta por fazer súditos dos súditos todos os dias.
E o vizir, então, compreendeu o que era terrível, e que aquele homem jamais seria, de fato, um sultão como seus ancestrais.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Fake, fake, fake...

Você, torcedor são paulino que desistiu ontem, que largou o jogo no meio, e que soltou a frase "já tá perdido" ou qualquer variante dela,

você não é um torcedor de verdade. Você é um desses acostumadinhos a tricampeonatos, a comemorações confortáveis e a trocar os jogos importantes do seu time por noites de raiva e de tédio no facebook. Você sabe o nome dos jogadores porque gosta de xingá-los. Não interessa se você vai ao estádio quando pode ou se vê do sofá, ou se acompanha pela internet: esteja onde estiver, você não é um torcedor. Você não sofreu por amor quando seu time estava ameaçado de rebaixamento: sofreu por vergonha. Você não disse pros seus amigos, com convicção, que seu time não iria cair; você fugiu deles. A cada derrota, você largou seu time no meio. A cada jogo ruim, você largou seu time no meio. Você não é um torcedor.
Aprenda com os torcedores da ponte preta, que gritam, cantam e acreditam depois de tomar um gol. Que acreditam no que todos os outros dizem para eles ser impossível, por amor e por fé. Aprenda a conhecer a história do seu clube, a saber que, antes de ser o time mais vitorioso do Brasil, como você gosta tanto de dizer, ele deveria ser o SEU TIME. Aprenda o significado da frase: ESSE É O TIME ONDE A MOEDA CAI EM PÉ.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Rogério Sêneca?



Amanhã, a imprensa distorcerá o que Rogério Ceni disse ao sair de campo. O ídolo são-paulino, pressionado por duas perguntas seguidas sobre sua suposta aposentadoria, deu uma declaração sobre o clube em que trabalha. O teor da declaração será esquecido; a frase marcante, lembrada. “Dá para assinar contrato em branco”, disse o goleiro. Antes, fez filosofia sobre o tempo, o acúmulo de marcas e conquistas na vida, e a impossibilidade de se comparar gênios a’O Gênio (no caso, Rogério Ceni a Pelé, mas a frase poderia ser aplicável a Jonathan Litell e Liev Tolstoi). Não é a filosofia que será lembrada amanhã. Amanhã, uma frase será notícia, espremida entre as palavras de uma redação.

Parte da imprensa fará o que faz todos os dias: escolherá um recorte que se encaixe naquilo que quer e precisa, pelos motivos que for, dizer. Quando encontrar aquilo de que precisa, comemorará não como quem comemora um gol, com paixão e emoção pura, e sim como o torcedor cínico que, com um sorriso amarelo, comenta com um cúmplice a desclassificação do rival. O sentimento não será o de dever cumprido, mas o de ter tomado sua pequena parte na ração diária de erro sobre a qual nos fala Drummond. A vida seguirá seu fluxo, o tempo sua marcha, e as marcas, seu acúmulo.

Rogério não será a única vítima da imprensa. Jogadores e dirigentes de muitas outras agremiações terão o mesmo tratamento. Políticos terão o mesmo tratamento. Jovens entrevistados nas ruas, acidentes de automóvel, a morte de cantores; tudo terá o mesmo tratamento. Em algum lugar, quase sempre com público menor, outra parte da imprensa levantará sua voz e tentará fazer jus às palavras de um goleiro, de uma mãe ou de uma massa. Todos os dias, no entanto, o embate se dará não entre os órgãos que buscam a informação e aqueles que a aproveitam, mas sim entre a verdade e a vontade de falsificação.

O futebol não é um reino mágico: está intimamente ligado à sociedade. A ele estão associados grandes capitais, a imprensa, multidões, paixão, simbologia... A lista de cordões que o ligam à sociedade é imensa. Os jogadores de futebol podem ser símbolos de alienação e de desprezo, ou de rebeldia e consciência política. Como os artistas, os atores de cinema, os cantores e os padeiros. Não entrarei no mérito eterno de que futebol não é, necessariamente, alienação. Ficarei com o inegável: sendo fruto e parte integrante de uma sociedade complexa, não pode ser visto como simples brincadeira.

O futebol tem, no entanto, uma particularidade: talvez pela paixão, talvez pela exposição, talvez pelo volume de dinheiro que por seus centros circula, tudo está nele como que focado por uma lente de aumento. As palavras de um jogador são ouvidas e repetidas com mais constância que as de muitos líderes de oposição; são discutidas à exaustão por especialistas da informação e por especialistas da cerveja e do amendoim salgado. Se tudo ganha eco e se amplifica, deveríamos ser mais capazes de ver, nesse mundo, o que o repórter investigativo (e não um repórter esportivo) foi capaz de observar. Falo de Andrew Jennings, autor de dois livros sobre a corrupção em universos distintos: a Igreja Católica e o futebol. Vaticano e FIFA. Jennings diz que foi muito mais fácil investigar o último: afinal, a soberba de seus condutores (de seus Berlusconis) não lhes permitia que escondessem rastros e pegadas. Entre as quatro linhas, tudo estava mais às claras que entre as quatro paredes sagradas.

Mas do que mesmo eu falava? Ah, sim: amanhã, distorcerão as palavras de Rogério Ceni. Retirarão de contexto seu elogio à estrutura de seu clube. Rogério dizia que nunca pediu um adiantamento ao clube, e que nunca recebeu um salário atrasado. Dizia que dispunha de toda a estrutura que queria. E que com um clube assim, não havia questões de negociação para um eventual contrato: era possível assinar um contrato em branco. Afinal, a confiança, depois de anos de trabalho, é total e absoluta. “Dá para assinar contrato em branco”. Amanhã dirão, somente, que Rogério disse, numa entrevista sobre sua aposentadoria, que “Dá para assinar contrato em branco” com o São Paulo. A filosofia, por valiosa que fosse, será deixada de lado. E um pequeno desvio fará mágica. A mesma mágica que, todos os dias, é feita em todas as sessões de muitos dos jornais, dos programas de tevê e das emissões de rádio. A mesma mágica que foi feita hoje e ontem.