terça-feira, 29 de abril de 2014

Jesus e Genésio

A internet anda confusa. Pudera: o fluxo cada vez mais frenético de informações cada vez mais superficiais, inverificáveis e repassadas aleatoriamente não poderia dar em outra coisa. "Compartilhei por que achei bonitinha a roupa que ela está usando na entrevista, embora ela fale um monte de besteira"; "Achei o trocadilho divertido". Algum dos meus amigos (perdão, Vinícius, acho que foi você ou o Alex, mas não tenho certeza) disse, nesse fim de semana, que quando alguém recorre à liberdade de expressão para justificar a validade do que disse, é por que falta qualquer outro argumento que valide o conteúdo ali expresso. Vaidade das vaidades: alguém, em algum momento, teve a brilhante ideia de louvar aqueles que "falam tudo o que pensam", como se pensar antes de falar ou se resguardar a ouvir fosse algum crime, ou se como toda opinião fosse válida, apenas por ser opinião. Fico com uma das frases de vovó: nascemos com dois ouvidos e uma boca, então temos a obrigação de ouvir mais do que falar. Liberdade de expressão, enquanto assunto público, é essencial; liberdade de expressão enquanto justificativa privada por um comentário infeliz, essa é horrorosa. Quanto mais palavras e informações circulam, menos claras as mensagens ficam. Movimentadas e turvas, as águas se tornam um material quase que opaco, de visibilidade limitada. Acalmadas e serenas, são lúcidas.

Tentemos, pois, acalmar um pouquinho as águas. Para um moleque (peço perdão ao alunos que lerem esse texto, pela repetição) que decide deixar a casa, a família, e jogar futebol, a decisão não é nada, nada fácil. Encarar tal responsabilidade, com medo constante de uma lesão que possa, em uma fase determinante, encerrar um sonho, é coisa para adulto. Parte desses adultos, com dezesseis, dezessete anos, é convidado para se mudar para algum país da Europa, onde deverá ser recebido por uma grande e fanática torcida, por companheiros de clube que admirará, e onde, ainda que no início não o sinta, se adaptará com facilidade. São as portas de um sonho se abrindo, tão importantes como a primeira iniciação científica, o cargo de importância na empresa júnior, o primeiro contrato fechado ou o favor (merecido) de um Professor Doutor ou Diretor Executivo. Sonho que pode adquirir contornos de pesadelo.

A torcida pode não ser tão calorosa; a língua pode parecer hostil, e as placas, incompreensíveis. Mas no momento em que a língua se torna um pouco mais clara, as torcidas (a sua e a adversária) é que se tornam hostis; sua atitude, incompreensível. Há também o recurso às linguagens universais: a genialidade e a imbecilidade, se têm algo em comum, é o fato de quase sempre conseguirem atravessar barreiras linguísticas como se essas simplesmente não existissem. E dentre as imbecilidades (ou devo dizer, bestialidades), talvez o racismo seja uma das mais violentas, incompreensíveis e absurdas. (Outras: o machismo, a intolerância religiosa, a homofobia.) O racismo, para tais garotos, ou, na linguagem da bola, para os moleques, pode se tornar uma barreira. Desprotegidos em muitos aspectos, num país estrangeiro, longe de amigos e de parte da família, o poder intimidador de atos de racismo pode ser o determinante para a desestabilização. Torcidas fanáticas tendem a atrair ou abrigar, por vezes, torcedores agressivos que, em acessos de irracionalidade lamentavelmente comuns, protagonizam violências ou perseguições a atletas. Um sonho que exige muito investimento (de dinheiro, de tempo, de vontade) pode, assim, vir a ser interrompido por conta de uma estupidez sem tamanho: o racismo. E para esses moleques, isso significa dar cinco passos para trás, desistir da faculdade no fim, abandonar a empresa antes daquela promoção. Significa voltar à estaca zero. E o pior: não por que ele tenha cometido uma falha, mas porque o mundo parece imbecil demais, mas tão imbecil, a ponto de oferecer sessões de humilhação gratuitas. Um padeiro que se recuse a atender alguém por seu sotaque; um transeunte que se recuse, pela cor da pele de outro, a parar para ouvi-lo; uma banana atirada no campo.

Nos últimos dias, chegou ao status de viral a atitude do jogador brasileiro Daniel Alves, do Barcelona (cuja torcida já havia recebido jogadores com ofensas racistas há alguns dias - veja aqui http://esportes.terra.com.br/futebol/internacional/espanha/campeonato-espanhol/retorno-do-barca-tem-racismo-a-neymar-e-time-sem-vergonha,0bfe16c8afa55410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html ), de pegar uma banana que havia sido atirada em sua direção e, em pouco menos de seis segundos, descascá-la, comê-la e dar prosseguimento ao jogo. A atitude não foi radical como a de Kevin Prince Boateng, que abandonou uma partida, ou a de Yayá Touré, que falou em um boicote de jogadores negros à Copa do Mundo de 2018,  na Rússia. E Daniel Alves não é um craque.... 

(para os alunos de literatura, esse aqui é um exemplo de digressão!) 

Mas antes de prosseguir, quero falar sobre o que é um craque... Um craque é alguém que, vestindo uma certa camisa, seja ela de seleção ou de clube, consegue, num espaço limitado, com tempo limitado e num instante exato, realizar uma jogada que se grava, para sempre, na memória do torcedor. Aquele momento deixa de pertencer ao homem que o protagonizou, e passa a pertencer a uma torcida, a cada torcedor. In our minds... Forever, diz o personagem torcedor do Manchester United no filme de Ken Loach com Eric Cantona. Algo semelhante ao que faz um poeta com um verso, um romancista com uma cena ou frase, um diretor com uma cena de um filme. In our minds forever, como algo muito maior que simplesmente aquele momento. Uma prova de que a beleza existe, de que a humanidade é capaz de produzi-la, de alcançá-la, e de unir desconhecidos, independente de cor de pele, religião, país de origem, etnia, em uma coisa só. ( https://www.youtube.com/watch?v=UaRi-79yRw4 ) Um grito, um suspiro, uma impossibilidade de falar, um choro reprimido. Isso é um craque: e esse momento é o que temos contra a feiúra do mundo, contra os inúmeros momentos em que a vontade é de parar, de desistir. De largar a faculdade no quinto ano, de desistir do emprego antes da promoção, de dar cinco passos para trás...

... e foi aí que Daniel Alves se tornou um craque. Em seis segundos, em torno da bandeirinha de escanteio, ele transformou a banana que lhe foi atirada, ofensa racista e imbecil, em simples fruta. Em algo que, para além de si, se tornou, ali, naquele momento, insignificante, incapaz de pará-lo. Incapaz de desestabilizá-lo, de fazê-lo desistir. Daniel reduziu o racismo, naquele momento, à insignificância a que deveria ter sido reduzido há muito tempo: o papel de simples imbecilidade de algum indivíduo cuja visão do mundo é muito distorcida. Usado como arma, o racismo deveria ser insignificante, e Daniel o fez ser insignificante: contra o sonho de jogar em um grande clube, contra a vontade de vencer, contra aquilo que significa ser jogador de futebol para alguém que quer ser jogador de futebol, a ofensa não significou absolutamente nada. É incapaz de pará-lo, de desestabilizá-lo, de atingi-lo. E aquele momento, senhores, ficará nas mentes desses garotos para sempre, como está na minha, inesquecível. Um bom admirador de futebol, assim como alguém sensível para a arte, sabe quando está diante de uma obra prima. Daniel foi autor de uma obra prima, e deve ser louvado. Muito louvado. Seu ato não foi a solução do problema, como um bom verso não é a salvação do mundo. Ambos, no entanto, tornam o problema e o mundo (fundidos, os dois, no mesmo impasse) um pouco menos asfixiantes.

Até que comece a confusão na internet. Caronistas e hashtags não são o ato de Daniel, mas consequência dele. Confundi-los seria como atribuir os crimes de Charles Manson aos Beatles, cuja canção, Helter Skelter, era, segundo o serial killer, inspiração para matar. O status de viral aparece, em parte, por conta do apoio prestado pelo companheiro Neymar (vide a primeira notícia que linkei ao texto) na forma de uma foto com uma banana. Neymar é menina dos olhos da publicidade, assessorado em tudo o que faz, e discutir a natureza de seu envolvimento e em que ponto termina a solidariedade e começa a promoção é entrar em florestas densas demais para o momento. O que interessa é: Neymar é jogador de futebol, vítima de racismo, e, no contexto, a foto fazia sentido pleno. Era apoio e solidariedade. O que não faz sentido são os caronistas: os milhares de pessoas que, ao mesmo tempo em que defendem o ato de Daniel, são a favor da elitização dos estádios de futebol, e defendem, dia a dia, a segregação em cujo cerne estão a discriminação e o racismo. Globais, globalizados ou globobos, não importa; louros morenos, carecas, cabeludos, como na cantiga de corda, também não importa. O que importa é a incoerência das atitudes, e o quanto o senso de oportunidade precede a reflexão. A décima terceira selfie da semana, a maneira de promover a nova peça de teatro... Tudo isso precede a reflexão de quem está sendo excluído do esporte pelo novo padrão "fifa" dos estádios, qual o espaço de convivência democrático que reúne todas as classes sociais, credos, cores de pele. No trecho do filme de Ken Loach que postei acima, o carteiro Eric _ amigo, de repente, do craque Eric Cantona _ se queixa da falta que sente de ir aos estádios. É a pasteurização do grito de gol, ou como diz Lúcio de Castro, o processo de Eugenização do futebol brasileiro. O futebol, espelho da sociedade, poderia aqui comentar rolezinhos, rolezões ou rolexes. Mas também a discussão sobre o futebol foi ocupada pela discussão sobre a camisa, a namorada e o comportamento fora de campo do jogador e do treinador. Triste momento, do qual nos consolam quem? Eles, os craques, e seus lances mágicos, artistas da bola que mantém viva a chama da paixão pelo esporte. E pela humanidade.

Não sem tempo: o Villareal identificou o atirador de bananas e o baniu de seu estádio. Privado do espetáculo, que vá aprontar em outra freguesia, e que esteja fichado, na polícia, passível de processo e punição. Cada instituição fazendo aquilo que lhe cabe, e com plena consciência do quanto isso afeta a outra. Aí, talvez, esteja um caminho para, de fato, atacar o problema.

Obrigado, Dani Alves. Não somos todos você não; você é craque.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Dois sonetos

Frutos de um feriado dedicado a duas leituras políticas, a de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, e a de O Conceito do Político, de Carl Schmitt, me apareceram esses dois sonetinhos. São tentativas iniciais de trabalhar com a forma soneto (ou como diz Jorge Luis Borges, de treinar a mão), e também são alfinetadinhas carinhosas nos amigos que sempre me ensinam, cada vez mais, o que é a política. Digo, nas redes sociais, que não devem ser levados a sério; aqui, não preciso dizê-lo. Alguém já levou alguma coisa escrita nesse blog a sério? Porque se levou... Baby, you got it all wrong. ;)

Soneto Maquiavélico

Temente apenas à sua própria mão
E justo quando há olhares ao redor
Prudente em ter a lâmina maior
que o código de leis de seu bolsão.

Por outros nobres tido como irmão,
Por saber nomes e brasões de cor,
Defende-se de seu berço menor
E é de berços menores campeão.

Não outorgou-lhe o sangue, mas a espada
o mando do que chama hoje de lar,
lar onde a gente canta governada.

Veio a mão dum tirano decepar
E ao tê-la no castelo pendurada
Se faz temer ainda mais que amar.


Soneto Schmittiano

Não cabe a mim dizer se é belo ou feio,
De um ato, se é bondosa a natureza,
Se é lucrativa ou onerosa a empresa;
São tais distinções inútil rodeio.

Digo aos que ainda me julgam com receio,
que a guerra, para mim, não tem beleza,
não traz dinheiro ou bem, mas é coesa,
e a coesão reside no seu seio.

Se falo em definir os inimigos
Não é pensando em quem vou destruir,
E sim de modo a organizar perigos.

Política, em essência, é definir
a quem não cabem mais quaisquer castigos
a não ser o de cessar de existir.