domingo, 29 de agosto de 2010

Para ler com os culhões I



Por que há aquela classe de escritores que relutamos em indicar pros nossos amigos, que não comentamos com nossos pais e que temos vergonha de ler na sala de espera do consultório? Não seria absurdo evocar qualquer um dos argumentos à mão: “o que importa é a cultura”; “você deveria se orgulhar por estar lendo”. É, mas na prática é bem diferente quando a mocinha bonitinha do elevador pergunta pra você sobre o que é esse tal de “A História do Olho” aí. A risadinha dela é inevitável, e o seu equilíbrio na tênue linha entre as vontades de se esconder e de esmurrá-la também.



O embaraço da situação não tem, no entanto, um motivo lógico. A reação é quase sempre involuntária, imediata; as pessoas riem. “Uma antologia do quê?” “De poesia erótica”. As pessoas riem... E depois nos perguntam o que é uma antologia. Fascinadas pelos pães quentinhos na lista de mais vendidos das revistas semanais, elas não poderão compreender ao certo por que você está lendo algo que não o ajuda a crescer espiritualmente, ou que não é “aplicável”. Até porque, tempo é dinheiro, e o ideal é usar o seu tempo de modo a “investir em capacitação”. A única resposta possível, nesse caso, é “ah, mas eu me divirto lendo”. O que pode ser verdade em alguns casos. Não nesse.



A classe de escritores que está em pauta não é simplesmente parte dos “chatos da literatura”. Os motivos que nos levam a não recomendar José Cardoso Pires são bem diferentes daqueles que restringem Roberto Piva ou Henry Miller. Embora seja verdade que todas as pessoas vêem pornografia em algum momento, ou pelo menos sonham em vê-la, essas mesmas pessoas não estão realmente dispostas a admitir isso. Ver elementos desse inominável em um “objeto de cultura” é perturbador. A literatura, sendo momento de diversão, não serve para que encaremos o sexo (e a vontade dele), a violência (e o impulso para ela), a perturbação. Afinal, o mundo já tem o suficiente disso. Não há motivo para usar a leitura, o momento de fantasia, para ver mais do mesmo.



O problema (e é um grande problema) é que não é mais do mesmo. A violência, a sexualidade e o desespero são, sim, temas que perpassam o cotidiano. Fazem-se presentes em pequenos momentos, nos quais nos dignamos a contemplá-los ou a vivê-los entre quatro paredes e nos jornais. Porque é esse o lugar deles. Exceto pelo fato de que não é esse o lugar que eles ocupam. Então aparecem esses malditos com burgueses perfeitos que são criminosos por prazer. Com suicídios horrendos e a dificuldade de lidar com eles. Com peças em que um bebê morre e, diante da fome, é devorado pelos adultos que o cercam. E o pior é que tudo isso não acontece num gueto, nem com algum maluco que tenha sido violentado quando criança: acontecem “sem explicação”, com gente “normal”.



Encarar esse tipo de escritor exige mais do que tempo e dinheiro: exige culhões. A entrega a eles, embora seja dolorosa, não é a contraparte de uma promessa de diversão nem de alívio. Não há investimento em nós mesmos e nem aplicabilidade. O que há, sim, é um tipo de vergonha misturado com uma sensação estranha de pertença ao mundo. Ao tocar temas que tentamos negar serem nossos também, esses homens não confortam; confrontam. E nós, leitores, também nos confrontamos, hábito tão démodé nesses dias. Coragem, dizemo-nos, coragem, e abra esse livro.



Talvez essa seja uma das poucas formas de entrarmos em contato justamente com o que escapa aos nossos conselheiros: aquilo que não confessamos. As coisas que nos fazem corar, e que no fundo são o que nos rege. As paixões para além da literatura, que só a Literatura toca. O motivo de mais profundo embaraço de cada leitor e de cada ser humano: aquilo que ele é de fato. Afinal, o que nos deveria dar vergonha não são os livros de Sade, Bolaño e Hilda Hilst (que ninguém sabe quem são de qualquer forma), e sim as revistas disponíveis à porta dos dentistas e dos médicos.

sábado, 14 de agosto de 2010

A natureza brutal das coisas

Embora não tenha tido contato com os papas do gênero (e mais especificamente com o sumo sacerdote Hunter S. Thompson), estive lendo livros que têm como proposta um maluco se meter no meio das coisas. Não, eles não ficam ali observando e tomando nota: eles vão. Pra máfia, pra pegação ou pra porrada: eles vão mesmo. E não saem de lá enquanto não presenciarem o último nível de loucura, que só acontece depois que se descobrem incorporados a seja lá o que foram investigar. Não confundir, por favor, com os jornalistas que fazem relatos precisos, cativantes e extremamente competentes de conflitos ou de certos acontecimentos. A diferença é brutal.


Ainda que o adjetivo pareça insólito, não haveria forma melhor de distinguir entre os dois tipos. O encontro dos jornalistas com a realidade acontece como uma colisão: munidos de cadernos, máquinas fotográficas e gravadores, eles se lançam a um fato ou a uma região. Seus escritos são sempre carregados de recepção, e também é assim que os leitores tocam os resultados. Livros cheios de dados, de quadros marcantes, capazes de tocar a fundo as concepções e a formação intelectual de quem com eles se depara. O sujeito desses livros é uma realidade. O autor, assim, é um meio, alguém que por algum senso de responsabilidade, profissionalismo ou recompensa se embrenhou em algo espinhoso o suficiente para valer um número satisfatório de páginas.


O tal “maluco que se mete no meio das coisas” é ele próprio o sujeito dos livros que escreve. Há informação nesses livros, e muita; mas embora ela não seja ocasional, pode-se dizer que não interessa tanto. O que fascina é o modo como a realidade é ao mesmo tempo violenta e visceral, como ela tem um impacto que leva o autor à náusea. Transformados aos poucos em personagens de literatura, os homens que se propõem a esse tipo de livro realizam uma experiência com seus corpos, suas mentes e sua escrita. Não estão apenas munidos de seus elegantes moleskinis ou de gravadores: trazem na bagagem seus braços, seus hábitos, suas gírias, seu fígado e seu(s) senso(s) de verdade.


O grande barato que experimentamos com livros como esses não está em se informar sobre algo, mas em compartilhar a experiência de alguém em meio a qualquer coisa. Não somos convidados a um cenário ou a um fato ao abrir uma obra dessas: como leitores, somos bem-vindos a uma experiência que rarefaz o ar quando aproveitada. A jornada realizada é pelas entranhas de escritores. Não são diários, nem relatos de viagem, nem livros-reportagem, e são um pouco de cada uma dessas coisas. São, em última instância, tentativas de narrar, de dividir o que um corpo e uma mente foram capazes de apreender, suportar e carregar.


De certa forma, esses livros nos fazem uma proposta muito mais indecente que uma acusação de ignorância ou de falta de engajamento. Ao conclamar o leitor, homens de escrita bruta fazem um convite para o conhecimento de certos limites do outro. Mas o outro, como bem sabe qualquer um que esteja munido de um espelho e de uma janela, é também o próprio. São livros dispostos a apontar para os vizinhos do leitor, para seus parentes e para seus amigos. Mas são fundamentalmente livros sobre nós mesmos, sobre nossos desejos e sobre nossas naturezas. Por isso, vale a pena se entregar a mais que uma contemplação sentimental ou técnica das coisas de vez em quando. Afinal, o coração que também bate no peito dos despirocados pode ser tão sujo quanto o nosso.



Recomendação: Entre os Vândalos, de Bill Buford, pela Companhia de Bolso.