sábado, 14 de agosto de 2010

A natureza brutal das coisas

Embora não tenha tido contato com os papas do gênero (e mais especificamente com o sumo sacerdote Hunter S. Thompson), estive lendo livros que têm como proposta um maluco se meter no meio das coisas. Não, eles não ficam ali observando e tomando nota: eles vão. Pra máfia, pra pegação ou pra porrada: eles vão mesmo. E não saem de lá enquanto não presenciarem o último nível de loucura, que só acontece depois que se descobrem incorporados a seja lá o que foram investigar. Não confundir, por favor, com os jornalistas que fazem relatos precisos, cativantes e extremamente competentes de conflitos ou de certos acontecimentos. A diferença é brutal.


Ainda que o adjetivo pareça insólito, não haveria forma melhor de distinguir entre os dois tipos. O encontro dos jornalistas com a realidade acontece como uma colisão: munidos de cadernos, máquinas fotográficas e gravadores, eles se lançam a um fato ou a uma região. Seus escritos são sempre carregados de recepção, e também é assim que os leitores tocam os resultados. Livros cheios de dados, de quadros marcantes, capazes de tocar a fundo as concepções e a formação intelectual de quem com eles se depara. O sujeito desses livros é uma realidade. O autor, assim, é um meio, alguém que por algum senso de responsabilidade, profissionalismo ou recompensa se embrenhou em algo espinhoso o suficiente para valer um número satisfatório de páginas.


O tal “maluco que se mete no meio das coisas” é ele próprio o sujeito dos livros que escreve. Há informação nesses livros, e muita; mas embora ela não seja ocasional, pode-se dizer que não interessa tanto. O que fascina é o modo como a realidade é ao mesmo tempo violenta e visceral, como ela tem um impacto que leva o autor à náusea. Transformados aos poucos em personagens de literatura, os homens que se propõem a esse tipo de livro realizam uma experiência com seus corpos, suas mentes e sua escrita. Não estão apenas munidos de seus elegantes moleskinis ou de gravadores: trazem na bagagem seus braços, seus hábitos, suas gírias, seu fígado e seu(s) senso(s) de verdade.


O grande barato que experimentamos com livros como esses não está em se informar sobre algo, mas em compartilhar a experiência de alguém em meio a qualquer coisa. Não somos convidados a um cenário ou a um fato ao abrir uma obra dessas: como leitores, somos bem-vindos a uma experiência que rarefaz o ar quando aproveitada. A jornada realizada é pelas entranhas de escritores. Não são diários, nem relatos de viagem, nem livros-reportagem, e são um pouco de cada uma dessas coisas. São, em última instância, tentativas de narrar, de dividir o que um corpo e uma mente foram capazes de apreender, suportar e carregar.


De certa forma, esses livros nos fazem uma proposta muito mais indecente que uma acusação de ignorância ou de falta de engajamento. Ao conclamar o leitor, homens de escrita bruta fazem um convite para o conhecimento de certos limites do outro. Mas o outro, como bem sabe qualquer um que esteja munido de um espelho e de uma janela, é também o próprio. São livros dispostos a apontar para os vizinhos do leitor, para seus parentes e para seus amigos. Mas são fundamentalmente livros sobre nós mesmos, sobre nossos desejos e sobre nossas naturezas. Por isso, vale a pena se entregar a mais que uma contemplação sentimental ou técnica das coisas de vez em quando. Afinal, o coração que também bate no peito dos despirocados pode ser tão sujo quanto o nosso.



Recomendação: Entre os Vândalos, de Bill Buford, pela Companhia de Bolso.

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