quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A Literatura e as Idéias

Os livros são objetos muitíssimo sérios. Os que recorrem de alguma forma ao humor, acima de todos os outros. Porque escrever, não na acepção do verbo que significa deitar palavras, mas naquela que quer dizer organizá-las, dá-las algum tipo de forma, de amarração, isso é muitíssimo grave. Não pelo fato de exigir tempo, esforço, um conhecimento mínimo e muita paciência (embora exija um belo bocado disso tudo). Não; escrever é sério porque é uma ação que ultrapassa as barreiras do privado, porque atinge a esfera do outro. Porque as palavras podem ser achadas, e uma vez achadas, podem ser incorporadas.

Ninguém duvidará do poder sobre as idéias que os livros exercem, ficção ou não. Pregados (muitas vezes arbitrariamente) aos pensamentos do indivíduo, os trechos escritos em uma determinada ocasião percorrem túneis a velocidades supersônicas, em cujo interior são desmembrados, pelados, desprovidos muitas vezes de sua pele e de sua estrutura óssea para chegar a uma outra mesa como ingrediente ou tempero. O percurso os aquece, de modo que ainda que sejam requentados, farão parte da refeição sem se acusar. Descascados, moídos e requentados, Nabokov, Rosa, Nietzsche, Sartre e outros nomes são postos aí, como uma pequena degustação. E sabem a mediocridade.

Esse não é, no entanto, um problema. Que se reserve, pelo amor da memória, o direito a adolescentes ou adolescentes tardios de citar quem queiram em suas páginas de redes sociais; vá lá. Não é essa a questão. Até porque, as coisas isoladas, assim, têm o direito a ter significação própria, inclusas no contexto de vida da pessoa. O problema é que essas idéias circulam, e aquela primeira prática, a de deitar palavras sobre um papel, se confunde rapidamente com a segunda. Isso é um primeiro perigo. Pois a partir do momento em que as grandes idéias que foram diluídas em água são passíveis de comparação com a água pura, ali sim há uma anomalia. Perde-se a fronteira da seriedade.

Parte do respeito à escrita e à literatura vem do comprometimento com a tentativa de fazer literatura, e principalmente de fazer circular literatura. A ausência de pretensões, na boca de tantos os que se lançam ao duro trabalho do livro, está tão na moda quanto a pretensão total. São recursos, é verdade; mas se tornam nefastos quando são o único recurso. Digo e repito: a literatura é séria. E é séria porque é um ato que envolve mais de uma pessoa; caia ela em mãos erradas e povoará os mais horripilantes pronunciamentos. Ainda que não se acredite na sua força.

O século XX viu as regras da literatura serem postas abaixo, como as da arte. Viu o esforço monumental para recriá-las, para dar sentido ao que já não parecia ter sentido. Nossos antepassados tentaram muito: colagem de fragmentos, reescritura, outros critérios, ironia, incorporação da crise. Tudo isso se tornou matéria de arte e matéria de literatura; nada disso ficou nulo como veículo de idéias. Mais ou menos acessíveis, da destruição do passado de Marinetti à interpretação do mundo como museu de Duchamps, tudo teve devidamente uma insinuação à mente. Essas insinuações, no entanto, não foram gratuitas; foram frutos de esforços, e sua compreensão também foi fruto de grandes esforços. Se regras foram abolidas, isso não aconteceu para que fossem ignoradas, e sim para que fossem levadas em conta. Lembrem-se de que derrubamos esses prédios.

Por isso a reciclagem de idéias é tão perigosa. Não apenas na literatura ou na arte; não se pode perder de vista que a escrita automática de Breton, por exemplo, só podia ocorrer porque se acreditava num resultado da escrita automática que tivesse um comprometimento com a literatura. Qualquer pessoa que deseje criar algo precisa estar seriamente engajada em sua criação, seja ela artística, filosófica ou política. Porque afinal, nada está tão ruim que não possa piorar. Nem os textos alegóricos.

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