terça-feira, 14 de setembro de 2010

A reinvenção de Orfeu

Há um determinado grupo de homens e mulheres cuja imagem preserva um frescor eterno. Não interessa aonde se vá ou em que classe social se procure, seus rostos estão lá em algum canto. Buda, Che Guevara, Kurt Cobain... figuras que não apenas preservam-se enquanto selo, mas que em alguma medida permitem, a quem quer que os olhe, o vislumbre de uma idéia. Claro que apenas algumas pessoas terão acesso a esse pensamento, e que haverá visões diferentes sobre ele. Afinal, um Buda colocado por uma típica desperate housewife em sua casa é, a rigor, um objeto decorativo para trazer paz e equilíbrio. Para um iogue, no entanto, aquele homem sentado na posição da flor de lótus representa uma série de conhecimentos e um caminho a ser trilhado pelo corpo e pelo espírito.

A imagem de Arthur Rimbaud é em si completamente atípica entre os ídolos de juventude. Em primeiro lugar por se tratar de um homem do século XIX, quando via de regra as estampas nas camisetas e nos álbuns de Orkut são de fotografias do século XX. Afinal, as pessoas do século XIX parecem ter uma característica unificadora: todas são essencialmente feias (vide Rainha Victoria, Charles Darwin, Leon Tolstoi e Dom Pedro II). A exceção é um moleque de olhos profundamente azuis e tez muito clara, que escandalizou e encantou Paris com sua poesia, seu comportamento e sua beleza. Rimbaud nunca pareceu ter nascido para integrar as fileiras da normalidade.

Se o poeta francês se tornou o estereótipo do jovem escritor, isso se deve, mormente, ao poder de sua escrita, que encantou completamente uma outra figura pop bastante cultuada: Jim Morisson, vocalista da banda The Doors. Morisson não apenas escrevia poesia, mas acreditava ser a reencarnação de Rimbaud. Fez, com sua música, sua imagem e sua performance delirante no palco, com que os adjetivos que foram cunhados para seu ídolo lhe fossem perfeitamente aplicáveis: enfant térrible e poète maudit, o cantor trazia a seu público uma vontade de explosão e de libertação. Morisson retomava o verso de Rimbaud que serve de epígrafe a esse texto e que, uma vez escrito, permaneceu parado e incômodo entre duas fases da vida: a infância e a vida adulta. Os poetas não queriam mais voltar à primeira, e a segunda era entediante demais.

Esse grito parado no ar parecia chamar leitores e não leitores a algo outro. Não mais as besteiras da infância, com suas brincadeiras que preenchem a mimese porca da vida adulta. Não mais os caprichos dos deuses diante das necessidades de pagar aluguel, ter companhia e ser o oposto de imprestável. Dado do ponto mais alto de um entreposto, o brado rimbaudiano rompia com toda uma tradição que queria voltar à infância. Adoecia, e sua doença era a juventude; era estar louco, e nessa loucura encontrar a lucidez de antes da morte. Adoecia e era ele próprio a explosão do que definha. Antes de se tornar adulto, queria permanecer aquilo, todos os sentidos desregrados através de uma disciplina férrea.

O grito que erguia no ar não era, como muitos pensam, uma afirmação conclusiva típica de um adulto que sabe o que está falando. Era antes uma resposta, ensaiada por tantos, no momento em que as regras e as obrigações atingiam um auge cruel (com o ritmo da vida sendo cada vez mais ditado pelo relógio da torre). Não se pode ser sério aos dezessete anos. O verso que antecede esse primeiro verso (quase sempre o verso mais importante de um poema, essa presença invisível e imprescindível) é um simples clamor de seja sério, cresça. Não, Rimbaud não crescerá. E num momento em que se é necessário escolher “a carreira pro resto da vida” exatamente aos dezessete anos, sua imagem continuará sendo cultuada; seus versos continuarão sendo lidos e declamados. E cada vez com força e frescor maiores.

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