sexta-feira, 31 de maio de 2013

Manifesto imaginário diante de um caso não imaginário

(Supostamente escrito pelo capitão Bloch-Rochelle, em torno do ano de 1900, e encontrado entre seus arquivos pessoais).


Não há engodo em pensar, meus senhores e senhoras da grande França. Engodo algum. O engodo está justamente no não-pensar, no utilizar a mente para qualquer outro propósito que seja o de não-pensar. Ou antes, devo me corrigir, no utilizá-la para um propósito que seja o de não-pensar diante de outros, de outras. Diante do próximo, do distante, do estrangeiro ou do patrício.

Alguns nos têm acusado, com bastante veemência, de nos postarmos contra a nação francesa quando defendemos que um preconceito não deve guiar um julgamento. Dizem que prejudicamos a unidade nacional, que o país está desmoralizado em virtude das recentes crises, e que nossa ação, que se guia por uma “petulância de academia”, é um atentado à cultura.

A cultura, meus senhores e senhoras, é mais que um mero verniz, que o toque final da glória e da beleza de uma nação ou de um povo. A cultura não serve como objeto de exibição (embora tenha servido), como atestado de posição social (embora venha servindo) ou como uma pequena jóia adquirida a custo de muita economia visando algum tipo de auto-afirmação (embora, ultimamente, a metáfora tenha sido muito precisa na descrição do que se têm feito da mesma cultura).

A cultura, meus senhores e senhoras, é muito mais que o tal verniz; é um processo através do qual o homem, imerso em sensações que não pode compreender completamente, é forçado a utilizar a faculdade do pensar. Ainda que saiba que as obras de arte, que os objetos de cultura, não apelam exatamente a esta faculdade.

Alguns, perigosamente, crêem que associar a cultura e o pensar é um equívoco. O equívoco é não fazer a associação, por mais dolorosa que ela seja. A faculdade do pensar, meus senhores, não diz respeito (que perdoem-me os meus rigorosos colegas da filosofia e da lógica, que me têm sido tão amáveis, por me intrometer em seu domínio) única e exclusivamente à ordenação de categorias, à classificação, à transformação das coisas ao molde da mente pensante. A provocação da cultura, a grande provocação, é justamente jogar com esse molde. É transformá-lo, é quebrá-lo e vê-lo se reerguer de diversas formar.

A cultura, meus senhores e senhoras, nos atrapalha muito em nossas convicções e julgamentos. Coloca-os na berlinda. Assim, é impossível acessar a cultura tomado de conceitos estabelecidos antes do ato. Para acessá-la corretamente, para poder entrar em seus salões e beber de seu néctar, é necessário deixar as convicções do lado de fora da porta. Com isso, não quero dizer que o homem ou a mulher que acessa a cultura está sem convicções. Se elas forem suficientemente sólidas, suficientemente embasadas, persistirão, e ganharão força. Mas apenas ganharão força se forem questionadas. Levar, para um julgamento como o do caso Dreyfus, que passo a chamar aqui o caso Dreyfus-Zola, as concepções prévias sobre os judeus ou os socialistas é incorrer em erro tão grande quanto julgar que um romance de Zola é bom apenas por ter sido escrito por Zola. Afinal, o próprio Zola também se equivoca. É, ainda assim, o homem mais corajoso deste país. Por não temer seus erros, sabendo que são frutos, sempre, de seu pensar.

O pensar, meus senhores e senhoras, é representado, simples e somente, por esta faculdade de questionar e questionar-se. O não-pensar é exercido todas as vezes que uma convicção é repetida e repetida, sem cessar, em frases absurdas como “ainda que o réu seja inocente, é a unidade da nação que está em jogo”. A ideia da unidade da nação pode atropelar a inocência de um réu? Não, meus senhores, não pode.

No primeiro parágrafo deste manifesto, creio que deixei bem claro um equívoco cometido por mim. Além de tê-lo deixado claro, fiz uma correção ao meu erro, uma correção imediata, que visava a precisão. Iniciar uma ação por um erro pode ser considerado, por muitos, como tolice. Tolice maior ainda seria não iniciá-la, quando se supõe haver motivos para fazê-lo. Mas a grande estupidez, a grande idiotice (se me permitem o uso da palavra agressiva) seria, iniciada a ação, perceber nela um erro e não, imediata e energicamente, corrigi-lo, e tornar a correção pública. Principalmente se a referida ação disser respeito a outros. É neste espírito, senhores, que os exorto a corrigir seus erros, e a exigir de seus governantes, comandantes e generais que corrijam seus próprios erros. A glória não está em não errar; está, meus senhores e senhoras, em não-pensar.


Pensem, meus senhores e senhoras. Pensem incessantemente. E afastem de si o não-pensar!




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O texto acima é apenas um pequeno exercícios de imaginação, produzido em virtude de leituras recentes sobre a história da França.

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